‘Lord’ é um título de nobreza usado no Reino Unido. Lá, a Câmara dos Lordes constitui a Câmara Alta do Parlamento (equivalente ao Senado brasileiro). E, como o Reino Unido preserva a tradição, muitos lordes o são por direito de herança, mesmo que não sejam mais aqueles aristocratas donos de condados e castelos tão característicos mostrados em belos filmes ingleses.
No geral, tais aristocratas com séculos de tradição nos ombros, são figuras magras, de porte austero, nariz emproado, sempre de terno muito bem cortado (inexoravelmente de gabardine ou tropical inglês), cabelos perfeitamente alinhados e bigode ou barba (quando usados) milimetricamente aparados. Falam pausadamente, escandindo as palavras com extremo cuidado para que não haja qualquer dúvida sobre o que estejam falando ou perorando, sempre algo que deve ser ouvido, assimilado e seguido pelos súditos que o ouvem.
No Brasil de hoje, há duas figuras que mereciam participar da seleta casta dos lordes ingleses. Pensei nisto ao ver duas cenas televisivas: numa, a teatral “irritação” do presidente em exercício, Michel Temer, em seu primeiro pronunciamento aos jornalistas que cobrem o Palácio do Planalto, no dia em que estourou a delação do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado. Noutra, a babosa explicação do imortal Merval Pereira, porta-voz oficial dos irmãos Marinho, no Jornal das Dez da Globo News, para uma perigosa frase dita pelo Michel neste pronunciamento.
No primeiro caso, a cena só não ficou igual aqueles pronunciamentos presidenciais americanos porque nestes, o porta-voz oficial anuncia, antes: “The Presidente of United States of America”, o presidente entra, todos os jornalistas se levantam e aplaudem e the president fala algumas palavras antes de se colocar à disposição para as perguntas…
No nosso arremedo, Michel foi direto para trás da bancada e foi direto, também, ao assunto, naquele estilo peculiar (eu falo, vocês escutam e anotam e ponto final!): “Eu quero fazer uma declaração a respeito da manifestação irresponsável, leviana, mentirosa e criminosa do cidadão Sérgio Machado. E quero dizer aos senhores e senhoras que eu falo, em primeiro lugar como homem, como ser humano, para dizer que, a nossa honorabilidade está acima de qualquer função ou tarefa pública que eu exerça no momento ou venha a exercer. Não deixarei passar em branco essas afirmações levianas que eu acabei de mencionar. E eu falo, com palavras indignadas, mas ao meu estilo, para registrar, mais uma vez, que esta leviandade não pode prevalecer… Alguém que teria cometido aquele delito irresponsável que o cidadão Machado apontou não teria até condições de presidir o país.
Poucos minutos depois desta lenga lenga que, convenhamos, não esclareceu nem desmentiu objetivamente a acusação oficialmente delatada do cidadão Machado, Michel saiu da bancada sem permitir uma pergunta sequer e, ereto, empertigado, com os cabelos perfeitamente alinhados e convicto que convencera jornalistas e telespectadores de sua pureza d’alma sumiu palácio adentro, cercado pelos acólitos de sempre.
Não convenceu nem Délis Ortiz, a experiente jornalista da Globo que acompanhou o pronunciamento e comentou no ar: “Michel Temer falou por quase oito minutos, mas não deu nenhuma explicação sobre as duas menções feitas a ele na delação do ex-presidente da Transpetro…”
Mas convenceu inteiramente nosso lorde imortal, Merval Pereira, que, no Jornal das Dez da Globo News, encontrou um silogismo que elimina qualquer dúvida sobre a honestidade do Michel: para ele, a frase do interino foi um desastre e, como todo desastre é verdadeiro, a explicação do presidente em exercício tinha condições de ser verdadeira! Claro que ele não foi direto assim. Sob o olhar emocionado das duas outras jornalistas presentes, ele pontificou em seu indefectível gestual comedido, como um lord britânico o faria: “Olha… eu acho duas coisas: uma que a frase que ele disse sobre não poder ser presidente se tivesse feito o que foi denunciado, é politicamente desastrosa… e não teria sido dita se ele não tivesse querendo passar realmente a certeza de que ele nunca fez o que está sendo acusado. Porque nenhum político cauteloso diria uma frase dessa tão peremptória… Então, pelo contraste, a frase é tão desastrosa politicamente, tão perigosa politicamente, que passou pra mim a sensação que ele ‘tava dizendo a verdade.”
Em outra instância de poder, outros lordes, estes de toga preta e falar rebuscado, eivado de latinices, com a devida vênia, tomavam uma decisão de inestimável importância e profunda significação para o povo brasileiro. Após longa discussão, que se prolongou por várias sessões, uma turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu proibir o que chamou de venda casada, ou seja: um cinema não pode exigir que, nas sessões de cinema, seus espectadores só consumam pipocas vendidas pelo próprio cinema.
Com lordes, problemas e soluções deste nível, o Brasil queria o quê? Ganhar do Peru?