Diário de tempos mortos* – 30/10/2020

Há muito não nascem bons exemplos…

            Eu sou de uma época em que o maior inimigo do Brasil era a Argentina. Nossos políticos, nossos militares, as pessoas boas do país desconfiavam das intenções dominadoras  dos hermanos que, ancorados numa ligação histórica com a Inglaterra, se achavam econômica e culturalmente mais preparados pra liderar a América Latina, do que o Brasil, um país maior, mais populoso e mais rico, mas com um povo quase analfabeto.

Naqueles tempos, tanto Brasil como Argentina já sofriam total influência americana, de cujo quintal fazíamos parte. Além dos filmes, das músicas e do jeito de viver da sociedade – classes alta e média, evidentemente – os gibis, as histórias em quadrinhos, para adultos e crianças, eram dominados por heróis americanos, como Fantasma, Tarzan, Narda, Zorro, Flash Gordon, Luluzinha, Bolinha, Donald, Mickey e Pateta.

Nos grupos adulto e infanto/juvenil em que eu convivia, a animosidade contra argentinos era marcante no  futebol. Como torcedor do Cruzeiro, meus grandes e únicos “inimigos” eram os ‘atreticanu’, uma raça mal educada e mal cheirosa, cujo time, infelizmente, costumava ganhar do meu, faturando os campeonatos mineiros.

Minha raiva incontida pelo Galo só dava licença para outras raivas quando algum time carioca ou paulista (naquela época, era comum a gente torcer, também, para um time carioca e um time paulista) ou a seleção canarinho enfrentava algum time ou a seleção argentina. Sorte dos argentinos que meu pai e meu irmão mais velho não gostavam de futebol e eu nunca fui a um jogo num estádio – só depois, mais velho, já  na Era do Mineirão. Mas, contraditoriamente, o tango me encantava… (talvez a sexualidade em ebulição fosse a justificativa).

Quando isto aconteceu, eu já estava noutra. Já frequentava a biblioteca de meu pai, já me interessava por política, já sabia distinguir paixões de posições políticas. Continuava gostando de futebol e torcendo pelo Cruzeiro, mas vendo o Atlético como adversário a ser batido no campo de futebol apenas. Quanto à desconfiança dos argentinos, esta persistiu por mais tempo.

Foi preciso eu descobrir uma menina de 06 anos chamada Mafalda, que aparecia nas tirinhas de um jornal, para que eu entendesse que brasileiros e argentinos são naturalmente irmãos. A dominação que suas elites exerceram durante séculos sobre seus povos, criando mecanismos de poder que os mantivesse politica e culturalmente analfabetos é histórica e, com raros lapsos de tempo, permanecem existindo ainda hoje. E faz parte destes mecanismos a existência de inimigos externos.

Um dia após me obrigar a assistir até o fim o debate eleitoral americano e ter a certeza que o mundo continua correndo muito perigo nas mãos de um ser humano desprezível como Trump, o herói do Mito, leio que Joaquin Salvador Lavado, o Quino, criador de Mafalda, morreu. Mais um exemplo da minha juventude que vai se embora. De um mundo em que não tem nascido mais bons exemplos.

 

*Retomo um hábito da minha juventude: escrever um diário, que nunca mostrei pra ninguém (porque diários eram escritos apenas pelas meninas) e que, infelizmente, se perdeu entre as muitas mudanças que fiz pela vida.  Naqueles anos sombrios, o diário era político (outra razão para permanecer oculto), hoje não o será necessariamente, pois a esta altura da vida, não tenho motivos para mentir nem mesmo para mim próprio. E também, não será necessariamente diário…

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