Eu tenho um amigo de longa data que sempre foi um picareta típico. Daqueles que enganam os outros, mas que a gente não é capaz de xingar ou condenar porque suas picaretagens lembram muito o Tavares, aquele personagem do Chico Anísio, com o bordão “Sou… mas quem não é?”
Filho de um ‘self-made-man’, foi criado por uma tia solteira desde tenra idade, pois a mãe morrera e o pai casara-se novamente, formando nova família. Mimado por ela e sustentado financeiramente por ele, a quem imitava em tudo, não quis saber de cursar faculdade – “um atraso de vida” – e tentou seguir os passos do pai, entrando no mundo dos negócios desde cedo.
Como bom aprendiz, logo descobriu o macete fundamental: montar um negócio, ralar 18 horas por dia conquistando a clientela, pagar empregado com direitos trabalhistas, pagar aluguel, luz, água e mais impostos para governos vagabundos é fria! O negócio é ser intermediário… comprar ali, de pequenos artesãos sem canais de comercialização, e vender aqui, pelo dobro do preço, para consumidores que acham que comprar um produto sem nota fiscal é uma boa, porque estão comprando “mais barato” e passando a perna no governo
A gente se conheceu na sua juventude – eu era mais velho – quando ele começou a namorar uma menina do prédio, irmã de um amigo de ‘tchurma’ da minha idade. De moto envenenada, paramentado como todo motoqueiro que se preze, se achegava na patota, conversava muito, dava palpite sobre tudo e qualquer coisa, sempre mostrando uma certa superioridade, porque, mais jovem, era “empresário”, ganhava seu próprio dinheiro às custas do ‘seu suor’, enquanto a maioria do grupo era de universitários, ainda vivendo às custas dos pais. E aproveitava para “vender” seu kit de produtos, às vezes com sucesso. Tanto que ganhou um apelido: Motokit. Quando a ‘mina’ chegava, montava na garupa e lá iam os dois ‘pras quebradas’, seguidos pelos olhares invejosos de muitos, que ainda precisavam se locomover de lotação ou tróleibus, quando queriam curtir as noitadas…
O tempo passou, eu virei jornalista, mudei de cidade, Motokit casou, tinha filhos estudando e, por artes do destino, nos reencontramos e retomamos a amizade, agora à distância, nos vendo quando estávamos na mesma cidade.
Ele, agora, era micro-empresário, pagava o Simples direitinho, mas sempre tinha problemas com o INSS ou com a fiscalização da Prefeitura, já que sua micro-empresa ficava num quarto da própria casa. Mexia, e ainda mexe, com equipamentos elétricos/eletrônicos em geral, venda e conserto, usando dois esquemas que o mantinham como intermediário: por um lado, encomendava equipamentos diretamente de pequenas fábricas pelo interior do Brasil e vendia-os com uma margem de lucro de 20, 30%, para clientes que ele conquistara ao longo dos anos, com a mesma lábia que, na juventude, vendera kits para donas de casa, amigas de parentes e conhecidos; por outro, oferecia serviços de consertos dos equipamentos que vendia e de quaisquer outros que os clientes desejavam, serviços estes pelo quais cobrava, às vezes, até 100% a mais do que os técnicos autônomos a quem ele entregava para consertar, cobravam dele. “Os donos – dizia, referindo-se aos clientes – são muito otários, pô! Deixam as compras e a contratação de serviços por conta dos empregados… que não querem se dar ao trabalho de pesquisar preços! Por quê eu iria bancar o santinho?”
Não chegara ao mesmo nível do pai, à esta altura aposentado e vivendo de rendas dos muitos apartamentos, lojas, lotes e terrenos que comprara enquanto na ativa. “Mas, ainda chego lá! Você vai ver!”
Pouco antes de Lula tomar posse pela primeira vez, ele veio à Brasília, pois queria se encontrar comigo. Estava com muito medo. Dizia que só a eleição do “comunista” já estava atrapalhando seus negócios, muitas empresas tinham suspendido compras, pequenas fábricas estavam fechando por falta de encomendas, mas eu, como jornalista no centro do poder, poderia lhe dar algumas dicas de como enfrentar a situação.
Muita gente no interior tem esta mesma idéia: acham que por você morar em Brasília, você encontra com o senador no barzinho, vai em almoço no Itamaraty ou passa o fim de semana na Granja do Torto, dançando quadrilha com o presidente da República… (tinha um ex-prefeito da cidadezinha onde meus pais nasceram que, toda vez que minha mãe ia visitar a família, levava uma carta pessoal dele para ser entregue ao presidente. Dizia ele: “Verinha, diga ao Fernando Henrique que é o Noé que está pedindo para ele combater a inflação, senão os comunistas tomam o poder!)
Tentei ser racional com Motokit: que o comunismo tinha sido liquidado com a queda do Muro de Berlim, que o PT teria que se compor politicamente para governar, senão seria derrubado, que o Brasil era muito grande e complexo para ter suas estruturas de poder sacudidas e modificadas de um dia para o outro. Ele não se acalmou… ficou até um pouco decepcionado por perceber que o poder ficava bem longe da minha casa e que eu estava mais longe ainda de ter alguma influência nos destinos da Nação.
E também não mudou sua maneira de ser e viver: aumentou a intermediação para manter o padrão de vida. Só que, depois de algum tempo, com a política de inclusão social tocada pelo governo, expandiu sua clientela para a “nova classe média” que virou consumidora compulsiva. E Motokit passou a me ligar exultante pelo êxito de sua perspicácia micro-empresarial, que o estava levando para o mesmo patamar do pai. Fiel à filosofia capitalista do pai, o sucesso era unicamente em função de seu esforço e de suas estratégias comerciais… não tinha nada a ver com as políticas do governo que, aliás, só fazia atrapalhar e cobrar impostos que, quando possível, ele sonegava.
Eu aposentei, fui morar numa chácara, parei de viajar constantemente, ficamos sem nos falar durante um bom tempo. Mas, acompanhei sua vida de longe, pois sua mulher manteve contato com a minha, via redes sociais. De qualquer modo, fui surpreendido, estes dias, por uma mensagem via whats’app: “Oi, velho, já morreu?” Quando respondi oi, destampou a panela: “Alguns dados para você entender: em 2010, eu vendia 50 a 70 mil e dava para viver, mesmo com o faturamento variando… Daí, ele foi caindo e, na Copa, chegou a 06 mil! E quebrei! Tem um ano e meio que vendo dois aparelhos por mês! Meus técnicos estão desempregados e passando fome! Minha mulher perdeu o Plano de Saúde, eu vou perder o meu e meu filho só continua estudando porque o avô banca a escola. Me tornei um mendigo! Lá no bairro já quebraram 250 empresas. A Dilma acabou com o Brasil… Fernando Henrique plantou a árvore, Lula comeu as frutas e a Dilma cortou a árvore! Eu sinto a pobreza me envolvendo, cara! Perdi 25 clientes, que fecharam as portas… Meu pai tem 08 apartamentos, 06 estão vazios… e não adianta nem anunciar…!
Eu não resisti e digitei: “Vai melhorar, cara! A Dilma não foi derrubada? A corrupção vai acabar, a economia internacional vai sair do buraco, o Brasil vai entregar o pré-sal pras petroleiras, vai jorrar dinheiro de novo! Vai ser uma maravilha! Não desanime, seja otimista!”
Ele percebeu a ironia e, mais pessimista ainda: “Você é doido de achar que a Dilma tinha de continuar. Isto só vai melhorar daqui a 20 anos!”
E eu, racionalizando: “Não é uma questão de continuar ou não… É o respeito à democracia que precisa haver! Não se pode derrubar um presidente porque ele faz um mal governo… basta trocá-lo e a sua política nas eleições seguintes.
“Que respeito, p…* nenhuma! Se ela continuasse, isto aqui ia virar uma Venezuela, que não tem nem papel higiênico pra limpar a bunda! Eu sempre passei aperto, você sabe… E sempre me virei! Agora, ‘tô perdendo a minha dignidade! ‘Tô com 40 reais no bolso hoje, e não tenho nada pra receber… Meus clientes fogem de mim! Um concorrente meu meteu um tiro na boca! Opa! Um cliente ligando… Você me deu sorte, cara! Depois, te conto…” Não postou mais nada… Provavelmente, fechou algum negócio e saiu para comemorar com os amigos, ‘por conta…’ Ainda bem! Que a vida anda difícil, o dinheiro curto e as perspectivas péssimas… eu sei! Eu já vivi outras crises como esta, algumas mais bravas! Mas, nestes tempos de golpe contra a democracia, de traições, falsidades explícitas e de hipocrisia escancarada, eu não ando com muita paciência para consolar amigos, que tentam encontrar culpados para desculpar seus próprios fracassos.