A minha birra com os milicos vem de longe. Começou lá pelos 07/08 anos, em Belo Horizonte, quando minha mãe, que tocava piano, achou que eu devia aprender algum instrumento musical, preferencialmente piano, claro… A uns dois quarteirões de casa havia um curso de música de um coronel da reserva da PM, um cara muito conhecido e conceituado por ter sido músico e maestro da Banda Militar do Corpo de Bombeiros. Além de tímido, eu não tinha qualquer dom musical e, por isso, detestei a ideia. E, mais ainda, as três aulas que me vi obrigado a enfrentar.
O coronel professor era insuportável! Minha timidez me tornava uma pessoa obediente, que não reclamava e nem se insurgia contra nada… mas me obrigar a ficar de pé, me perfilar e fazer continência toda vez que o coronel entrava na sala pra dar aula era demais pra mim. E, sem brigar ou fazer birra, disse pra minha mãe que não queria ter aulas de música e não iria mais pro curso. Meu pai concordou e pronto. Reconheço que, mais tarde, eu percebi que gostaria de ter aprendido algum instrumento, violão, talvez, mas, àquela época, meados dos anos 50, o violão não era um instrumento apreciado pela classe média, pois tido como instrumento de classes inferiores.
Este anti-militarismo se consolidou quando da passagem do grupo escolar para o ginásio. Naquela época, gente da classe média como meus pais optavam por colocar os filhos em colégios públicos, primeiro porque os colégios públicos eram melhores e, segundo, porque não eram pagos. Ou vice versa. Na Belo Horizonte de então havia dois colégios públicos muito disputados: Colégio Militar e Colégio Estadual. Terminando o Grupo Escolar, eu fiz um Curso de Admissão, preparatório para o Colégio Estadual… mas não passei na 1ª Chamada, apesar de ter saído do Grupo com medalha por ser um brilhante aluno.
Meu pai, então, achou que a timidez estava me atrapalhando a vida e eu precisava de um choque de machismo, e exigiu que eu fosse fazer o “concurso” pra admissão ao Colégio Militar (tanto este como o Estadual tinham estes concursos admissionais, visto o número de concorrentes). Eu não queria, mas pai é pai, né? Fiz e, de propósito, não passei em matemática: precisava tirar nota 05… e tirei nota 4,7. E criei uma obrigação moral pra mim mesmo: tinha que passar de qualquer jeito na 2ª chamada do Colégio Estadual. E passei… em 2° lugar, modéstia à parte (já contei esta história aqui no blog).
Era o início dos anos 60 e o Brasil estava confuso e efervescente. E em 64, eu começando a me envolver com política, os militares deram o golpe e instalaram a ditadura. Amigos e professores, mais politizados que eu, achavam que a intenção do golpe era apenas botar a casa em ordem, uma ordem que os políticos conservadores tradicionais achavam necessária para um país cristão ocidental, e baixar a crista dos sindicalistas e comunistas, feito o quê, o poder seria devolvido a eles, que estavam mais bem preparados pra governar um povo inculto e politicamente analfabeto. Eu, um embirrado com os milicos, discordava: assumiram e só vão largar se houver luta! E lutar quem há de?
O tempo me deu razão: ficaram 21 anos – toda a minha mocidade e parte da minha maturidade. Minha birra infantil tornou-se raiva incondicional, à medida que as humilhações se sucediam, e, mais à frente, ódio mortal, à medida que prisão, tortura e assassinato de companheiros e amigas tornaram-se frequentes. Com o tempo e a vida seguindo seu curso, o ódio abrandou, mas consolidou-se em uma certeza que persiste até hoje: eu vou querer distância sempre da vida, dos hábitos e das ideias militares. Não discrimino e nem me afasto dos que conheço, claro, mas não permito muita proximidade. Minha inequívoca desordem mental me parece algo muito mais saudável que a ordem, a hierarquia e o civismo militar.
Antes de chegar nesta convivência salutar para minha história de vida e consciência, tive outras experiências desagradáveis com personagens do estamento militar e, por causa delas, percebi que minha ojeriza não é ao militar em si, como indivíduo, mas à inevitável postura de certeza inabalável e superioridade que todos eles adquirem na vida militar, uma postura que, quando contestada, mesmo em termos democráticos, se torna confrontadora, imperdoável, e nos transforma em um inimigo a ser combatido, com violência, se necessário, e não um mero cidadão que diverge de suas posições.
Quando fui convidado pra trabalhar em Brasília, em 1975, a ditadura já não parecia tão dura. Geisel tinha toda uma postura pessoal bem prussiana, mas conduzia um governo de ministros considerados técnicos e competentes, como Simonsen, Reis Velloso, Ney Braga, Paulinelli e Severo Gomes, por exemplos. E tinha um viés nacionalista bem acentuado, com ênfase desenvolvimentista, principalmente nas áreas de energia e agricultura.
Eu e Marília, minha primeira mulher, grávida da 2ª filha, viemos de ônibus de Belo Horizonte. Chegamos de manhãzinha em Brasília e nos sentamos na amurada da plataforma superior da Rodoviária Central (única, então), apreciando os carros que sumiam no Buraco do Tatu, à espera de meu amigo Silvestre Gorgulho, que me convidara pra assumir o seu lugar de Assessor de Relações Públicas da Companhia Brasileira de Armazenamento, CIBRAZEM, empresa pública subordinada ao Ministério da Agricultura (ele fora convidado pra trabalhar diretamente como ministro).
No mesmo dia fui conversar com o presidente da empresa… um paranaense pouco mais velho que eu, que tinha uma missão espinhosa: dotar o país de uma infraestrutura de armazenagem capaz de abrigar as futuras safras recordes de grãos que o Brasil estava começando a perseguir. Ruy Neves Ribas traçou um panorama do trabalho que CIBRAZEM precisava desenvolver, os projetos que vinham sendo implantados (a fronteira agrícola de então, se expandia por Goiás e Mato Grosso) e mostrou a dificuldade que o tema armazenagem – que não era um tema de interesse urbano, para leitores de jornais e telespectadores – significava para um assessor de imprensa, que era o que ele desejava que eu fosse na empresa. E acrescentou: “Sei que você é casado, tem uma filha pequena e outra a caminho… Pois você vai ter que viajar muito, comigo ou ‘semigo’… Vai encarar?”
Saí da conversa sabendo que teria 03 dias pra passar pelos trâmites da contratação, ir e voltar de Belo Horizonte e começar o trabalho, viajando com ele, de carro, para Rio Verde, no sul de Goiás… desde que fosse liberado pela ASI! Naqueles tempos, mais suaves mas ainda sombrios, toda estrutura de governo tinha uma ASI – Assessoria de Segurança e Informações, um lugar específico pra empregar milicos da reserva (os generais de então tinham mais sobriedade: militares só ocupavam postos compatíveis com a sua formação). O da CIBRAZEM era o coronel França, um soldado cioso de sua principal responsabilidade: impedir a entrada de comunistas, socialistas, revolucionários de qualquer tonalidade vermelha em um órgão do governo. (termina 6ª feira)