Capítulo 9 – Deus está comigo! Fodam-se os outros…
A temática guerreira era a única apresentada pelo Coliseu, o que é natural, vista a infindável guerra no Oriente Médio. Apenas um carro não retratava armas, bombas, invasões e que tais: ele trazia só um mapa mostrando A Grande Israel, com o lábaro da Estrela de David tremulando no Líbano, na Península do Sinai, na Palestina, na Jordânia, na Síria e no Iraque. Acompanhando o carro, homens fantasiados de barracas de campanha vinham sentados em arados puxados por libaneses, egípcios, palestinos, jordanianos, sírios e iraquianos. Meu anfitrião levantou-se de novo e aplaudiu demoradamente a apresentação.
As barracas humanas ainda passavam lentamente em frente ao “meu” camarote quando ouvi o vigoroso som de um berrante e dezenas de mulatas maravilhosamente seminuas arrastando capas pretas e brancas invadiram a avenida desordenadamente, mas sem atropelos, e apenas saracoteando bundas e peitos ao ritmo de um samba que eu não conhecia até o berrante calar-se e uma cuíca chorar, anunciando o último Coliseu a se apresentar.
Em instantes, as mulatas se cobriram com as capas e passaram a marchar em perfeita ordem, ao som de hinos marciais tocados por uma banda militar, comandada por 03 palhaços que faziam as mais estranhas evoluções: um, puxando um caixa eletrônico, caminhava entre os músicos da banda, recolhendo dinheiro; outro conduzia um carro de boi onde estava fixado um imenso ventilador; de tempos em tempos, ele pegava um bocado de bosta no carro e botava à frente do ventilador, espalhando-a pela plateia (invisível para mim); e o terceiro empurrava um carrinho de hambúrguer com uma imensa bandeira dos Estados Unidos.
Aí surgiu o primeiro carro alegórico, na verdade um barco alegórico, onde um imenso monstro de pedra, de costas para a passarela, batucava violentamente um colossal computador; de vez em quando, tocava um berrante e a passarela detrás do barco se enchia de figuras fantasiadas de vacas que passavam a mugir: Mitô! Mitô Mitô! Depois da terceira tocada do berrante, a boiada estava tão compacta atrás do barco que o monstro de pedra se levantou e se lançou sobre ela, passando a ser carregado por ela, aos gritos de Messias! Messias! Messias!
Logo a seguir, um jipão alegórico trazia um telão, transmitindo frases lapidares do Mitô! Coisas do tipo: “ Se quiser botar uma prostituta no meu gabinete, eu boto. Se quiser botar a minha mãe, eu boto”, “O erro da ditadura foi torturar e não matar!” “Se fuzilassem 30.000 corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, o país estaria melhor.”, “O objetivo é fazer o cara abrir a boca. O cara tem que ser arrebentado para abrir o bico.” “Gastaram muito chumbo com o Lamarca. Ele devia ter sido morto a coronhadas.” “Pinochet devia ter matado mais gente.” “…Esse é o índio que vem falar aqui de reserva indígena. Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens.” “Não vou estuprar você porque você não merece.” “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele…”, “Quem procura osso é cachorro.”.
Seguindo o jipão e suas “vacas”, outro jipão trazia um pavão misterioso regendo algumas dezenas de robôs que teclavam desesperadamente em celulares e lap tops, enquanto marchavam ordeiramente ao som dos tec tecs das teclas. Mais figuras fantasiadas de vacas, agora vestindo uma camisa canarinho e portando bandeiras verde-amarelas invadiu a passarela. Logo atrás, numa camionete em formato de um carrinho de supermercado, puxando uma Estátua da Liberdade em tamanho natural, um velho careca vestido de papagaio distribuía quinquilharias chinesas para a plateia que eu não via.
Outro carro alegórico surgiu então. Num palanque bem alto, o verdadeiro Mito, ou melhor, o mensageiro de Lúcifer incorporado a ele, mandava bananas, dedos e top-tops para um monte de figuras com canetas e papéis, máquinas fotográficas e câmeras que se amontoavam num cercadinho na plataforma do carro alegórico. Às vezes, fazia-se um silêncio absoluto em todo o cortejo, quando o Mito fazia uma metralhadora com seus braços e berrava: “É pra metralhar toda esta putada!” E a boiada, armada de tubos de spray jorrava jatos de inseticida ou qualquer coisa parecida sobre a plateia de almas, que eu continuava não vendo, enquanto urrava uníssona: “Ra tá tá tá! Rá tá tá tá…! Meu anfitrião não resistiu: levantou-se agitado e sacudindo os braços, gritou: Mitô! Mitô! Mitô! Quando se acalmou e se sentou, perguntei:
-“Foi você que ensinou esta coisa da arminha pra ele?
– Eu não estou vibrando com a apresentação, cara… mas com a genialidade do grupo. Os jatos de spray vão evaporar um monte de almas…
– Evaporar almas? Não entendi…
– Como todo e qualquer lugar, o Inferno também sofre, de vez em quando, de superlotação. Nestes últimos anos pós guerra fria, os humanos foram pródigos em diabruras e sacanagens, o que me obrigaria, mais dia, menos dia, a promover uma operação de evaporamento álmico, que é complexa e demorada, principalmente porque há regras rigorosas, que eu mesmo criei, para selecionar aquelas que permanecerão gozando as delícias do Inferno. Com este processo usado pelo Coliseu, economizo um tempão e muitos aborrecimentos e, rapidamente, preparo o ambiente para receber o monte de almas infectadas pelo coronavírus que já começou a chegar por aqui. (termina sexta-feira)