Do jeito que o diabo quer (VI/X)

 

De volta ao Inferno original

Capítulo 6 – Elocubrações sobre a rotina, o inferno real

-Desculpe… Retiro o que disse sobre suas limitações, porque reconheço que você fez uma boa descrição do Reino dos Céus, sem puxa-saquismo… Mas é importante que você, se topar descrever o Inferno, acredite em uma verdade fundamental: o Inferno é um complemento do Céu… Ou vice-versa. Não existe um sem o outro! E ambos são necessários à existência humana. Se não fôssemos nós, seu amigo lá de cima e eu aqui de baixo, não existiria mais humanidade, ela teria se auto destruído tantas vezes quantas fossem necessárias, caso permanecesse, por um acaso, algum resquício de vida sobre a Terra. Milhares de vezes, nós, cá em baixo, e eles, lá em cima, nos preparamos para uma superlotação álmica e, no último momento, aparecia uma voz da razão em meio ao caos, que era ouvida por muitos… E o caos era adiado!

– Você está menosprezando minha inteligência… Para um cara que nunca acreditou em De… em seu inimigo lá de cima, ou  na vida pós-morte, esta verdade é óbvia: quem inventou um, inventou o outro. – Pedi licença, me servi de outro uísque, e insisti – Mas, sinto muito, há muito pouco a descrever ainda: dois círculos em que eu poderia ter o prazer de rejubilar-me pelo destino de pessoas que me infernizaram a vida em algum momento dela, não tem muito sentido. Vou divulgar o quê? Vá para o Inferno e se vingue de seus inimigos? Ou: Vá pro Inferno e vire capacho de seus inimigos?

– Há um problema técnico aí…

– E daí? Ver Max e Maria José se fazendo de capachos pra mim não é digno do tão propalado fogo do Inferno. Já que o 1º e o 2° Círculos tem este objetivo, eu queria observar a mulher dele dando porrada nele todos os dias, eu queria ver a Maria José sendo torturada pelos professores que ela mandou pro Inferno em vida… Eu já entendi que seu interesse é pintar um quadro menos monstruoso do seu Reino, nada de tempestades de pedras, fogo eterno cozinhando as almas, ácido sulfúrico, caras enfiadas na bosta e que tais… Por quê? Está querendo atrair almas de viventes menos podres para cá?

– É um bom motivo, não acha? Na verdade, eu estou cansado de ser passado pra trás. Acompanho uma ‘alma perdida’ durante anos e preparo coisas muito especiais para ela aqui em baixo… No momento final, quando ela percebe que seu destino é o Inferno, ela se arrepende e se torna a mais doce criatura na face da Terra. E, sem nenhuma razão, os mais chegados ao seu amigo dão um jeito de leva-la pro Purgatório, de onde geralmente saem, mais dia, menos dia, pro Céu. E garanto que ela só se arrepende pelo pavor que o Inferno infunde no ser humano.

– Você não acha que a marketização do Inferno vai acabar com a sua finalidade, já que você é o antípoda de seu inimigo? Não, não precisa responder… Você falou em um problema técnico…

– E intransponível, até mesmo pra mim. Aliás, são dois problemas derivados de um fato concreto: você não é uma alma ainda. Se fosse, você estaria no lugar de Max ou de Maria José como capacho de possíveis almas que você maltratou em vida. Ou seja, seu slogan não cabe na realidade do Inferno: ninguém chega aqui para apreciar seus “inimigos” em vida sendo castigados, todas as almas chegam aqui para serem castigadas. E há uma gradação, que aumenta os castigos a cada Círculo, até a alma se fixar, pelo meu julgamento, numa das 04 Dependências do 8º Círculo.

– Ou seja: você tentou me enganar de cara! Olha só como o Inferno é lindo! Eu posso descontar todas as ruindades que me fizeram em vida exatamente naqueles que as fizeram…

– Não. Eu quis te mostrar, didaticamente, os primeiros castigos, os mais suaves, impostos aqui. Max e Maria José nem estão mais nestes Círculos e eu os pus ali porque fizeram parte de uma parte ruim de sua vida. Eu repito: as almas vão passando de um Círculo para outro, purgando todos os seus pecados, dos menores até os maiores, até o 7°, quando eu determino a Dependência que cada uma vai sofrer, o que, na minha avaliação, é o castigo eterno.

– A rotina?

-Sim. Como você próprio descreveu o Inferno – em muito poucas linhas, aliás – enquanto passava pelo Vestíbulo, as almas vêm para cá para reviver cotidiana e eternamente a rotina de suas vidas enquanto seres viventes. Em todas as suas fases: da infância à velhice. E eu sei que, depois de uma eternidade, a minha própria eternidade, muitas almas gostam deste castigo. Elas se adequaram à rotina de suas vidas, algo que significou a felicidade para elas. É isto que precisa ser mostrado, entende? O Inferno é um prolongamento da vida na Terra… Se a pessoa gostava desta vida, porque mudar?

– Morto, não mude sua vida… O Inferno garante isto!

– Isto aí, cara… Eu sabia! Você sempre foi um publicitário muito melhor que um jornalista…

– Não esculacha… eu nunca fui um bom repórter. Mas sempre fui um excelente editor. E editor tem que ser um mestre na criação de manchetes… E eu não vou poder entrar nestas Dependências? Gostaria de saber porque você considera a rotina o castigo eterno…

– Não é a rotina… É a mesmice: “Todo dia ela faz tudo sempre igual…”, você não gosta desta música? É o próprio Inferno… Infelizmente, as Dependências são exclusivas de almas… e você não é alma ainda. Cada Dependência tem um Nicho específico para cada alma, onde ela passa a “viver” eternamente.

– Muito confuso… Explica melhor. – Eu estava começando a gostar da conversa, principalmente porque o uísque descia suavemente, o que me levou a servir uma 3ª dose.

– Infância, Juventude, Maturidade e Velhice são as 04 Dependências. Dependendo do comportamento nos 07 Círculos anteriores, eu encaixo a alma para ela eternizar-se na rotina em uma destas fases da vida. Cada alma é encaixada no seu Nicho, seja o familiar ou o escolar ou o profissional e dali não sai mais.

– E como você encaixa uma alma cujos demais familiares ou colegas de trabalho ou parceiros de bar ainda não morreram?

– Seu amigo lá de cima não tem querubins, benjamins e serafins, anjinhos pra todos os trabalhos? Eu tenho satânidas, demônidas e belzêbudas, diabinhos que se transformam em consortes, filhos, amigos, colegas, sem problemas… Explico: quando um marido morre, passa pelos Círculos e eu o encaixo em seu Nicho, diabinhos se transformam em esposa, filhos, amigos… Se, tempos depois, a esposa morre e também vem para cá, passa também pelos Círculos e merece o mesmo castigo que ele, ela substitui uma diabinha. Aí o castigo fica mais completo ainda!

– Está começando a fazer sentido mas, se me permite uma crítica construtiva, eu tornaria o castigo mais objetivo, dentro das suas próprias regras: o marido seria a mulher, a mulher seria o marido ou o filho seria o pai e o pai o filho…

– Lá vem você com sua arrogância superior…  Você realmente sempre teve ideias brilhantes, sempre se destacou entre seus pares, porque seu medo de enfrentar a vida o obrigou a acumular um conhecimento que a maioria não tem. Mas, diante do verdadeiro conhecimento, você é um bosta, cara. Entenda uma coisa simples: se você fosse realmente a 5ª maravilha que você acha que é, eu não te contataria para uma campanha publicitária do Inferno. Você se acha o suprassumo da honradez, da ética, do cidadão honesto e consciente de seus direitos e deveres, mas não é mesmo…

– Eu reconheço que o diabo sabe ser, como dizem os evangélicos, melífluo… Elogia e humilha num único parágrafo… Eu, realmente, me achar honrado, ético, honesto e consciente de direitos e deveres? Eu tentei ser, mas isto não significa que eu tenha conseguido e seja perfeito. Certamente que não! Cometi e cometo muitos erros e carrego uma boa penca de pecados. Minha única vantagem sobre a maioria é que eu reconheço isto e nunca pretendi ou pretendo escondê-los ou inventar desculpas pra justifica-los. E isto não impede que eu tenha uma ideia melhor que a sua… Mas, de novo, você está desviando do assunto principal… Porque uma campanha publicitária de valorização do Inferno agora? (continua quinta-feira)

 

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