Do jeito que o diabo quer (IV/X)

Capítulo 4 – Vingança é um prato que se come quente

Quando saí do corredor me deparei com uma rampa cercada de luz e me vi vestido num uniforme verde-branco, segurando uma pasta preta e de cabeça erguida mostrando meus primeiros óculos – redondos como o do Professor de Capitães de Areia – que acabara de pegar na ótica. Ao final da rampa, o velho Alcides, o bedel, me barrou:

– Está atrasado, garoto…

– Eu avisei que ia atrasar. Tinha que buscar meus óculos…

– Qual a sua sala? E qual professor?

– 18… Maria José.

– Professora Maria José, garoto… Vai lá, mas, ‘tô de olho daqui, heim?

Cheguei na sala, bati e empurrei a porta. Maria José, professora de Matemática, estava onde sempre estava: sentada à mesa, os óculos de aros dourados encaixados na testa, uma varinha na mão e declamando um teorema que escrevera no quadro verde.

– Ora, ora, ora… Eis o nosso novo gênio: agora que botou estes óculos redondos ele consegue explicar pra turma o que quer dizer este teorema escrito no quadro?

Eu detestava aparecer em qualquer situação, ainda mais numa sala com mais de 30 colegas, dos quais pelo menos uma dúzia me detestava pela minha aura de bom aluno, apesar de gostarem muito de eu fazer parte do time de futebol de salão. Mas dona Maria José tinha uma pendenga comigo: em certa aula em que ela repetiu sua rotina, escrever um, dois, três teoremas no quadro, dizer o que eles queriam significar geometricamente e escrever qed (quod erat demonstrandum), eu, que sentava no meio da sala, abri os braços exageradamente e dei um imenso bocejo. Não foi de propósito, mas ela achou que foi. Não falou nada, mas fiquei marcado…

O que estava no quadro verde era: ‘Em um triângulo retângulo (com um ângulo de 90°), a soma dos quadrados dos catetos (os “lados” que formam o ângulo reto) é igual ao quadrado da hipotenusa (a reta maior da figura). Eu estava com meus óculos novos e me sentia poderoso… Encarei a turma (pra mostrar os óculos) e falei pra fora (eu costumava falar pra dentro): – Teorema de Pitágoras, pô! É só medir catetos e hipotenusa que vai dar qed… Para quê isto serve, não tenho a menor ideia…

A turma riu, bateu palmas, dona Maria José me mandou sentar e não falou nada. No final do ano, fiquei em 2ª época em Matemática. Na prova oral, com três professores, Mário de Oliveira, que fora meu professor no 2º ano, me deu 09 e outro professor que eu não conhecia me deu 09. Eu precisava de 6,5 pra passar de ano. Maria José me deu 01, ou seja: 19:3=6,33… E eu tomei bomba! A sala de aula desapareceu e Maria José estava na minha frente. Os óculos permaneciam na testa, sua postura de superior não mudara, mas ela foi extremamente humilde:

– Você acabou vencendo na vida, não é verdade? E não precisou de geometria ou trigonometria para isto. Vou tentar te explicar, sem teoremas, o que é o 2º Círculo, está bem?

– Não precisa explicar… eu já entendi. Como o Inferno somos nós mesmos, cada Círculo representa uma etapa da nossa vida. O que não consigo entender é porque almas que significaram um tormento em alguma época da minha vida estão aqui… Eu não tenho qualquer importância para o conjunto da humanidade… Eu entendo porque o Max, no 1º Círculo, que matou a mulher, esteja aqui. Mas, a senhora?

– Eu entreguei um monte de colegas professores e alunos subversivos ao DOPS e alguns deles foram mortos sob tortura durante a ditadura.  Minha presença no Inferno não tem nada a ver com você.

– E porque o seu Chefe quer que as pessoas que odiei durante minha vida sejam guias do meu rolé pelo Inferno?

– Eu não discuto as intenções e decisões do Chefe. A ditadura funciona no Inferno, assim como no Céu.

– Pelo que vi até agora, acho que não preciso percorrer os outros Círculos… Tenho certeza que vou encontrar algum dos policiais que ficava me dando petelecos e passando a mão na minha bunda no corredor do DOPS, apesar de eu não ter marcado a cara de nenhum deles, vou encontrar o cunhado do dono da editora em que eu trabalhava, que montou um folheto errado pra me comprometer e conseguir minha demissão porque eu tinha empregado um amigo “terrorista” na gráfica…

-Não é bem assim. Você tem absoluta certeza que nunca foi o inferno pra outras pessoas? Até agora, infância e juventude, você se deparou com os que te machucaram e marcaram… Com certeza, mais pra frente você encontre aqueles que você machucou e marcou. Não está disposto a enfrenta-los? Me parece que depois que  você conversou com você sabe quem e não foi chutado pra cá, você ficou meio arrogante, não? Você não gostaria de ver quantas pessoas durante sua vida te mandaram pro Inferno? (continua sexta-feira)

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