Do jeito que o diabo quer (III/X)

Capítulo 3 – Aqui se faz, lá se paga…

– Você é…?

– Eu sou a porteira-geral, uma espécie de São Pedro dos Infernos… mas pode me chamar de Ésséss, Soul Selector – pegou um tridente que estava embaixo da mesa, apontou para a fila e soltou algumas faíscas, imobilizando as almas instantaneamente.

– Não precisa fazer isto… Eu não tenho pressa!

– O Chefe tem. Se você olhar com atenção, vai perceber que atrás de mim há nove aberturas no chão. Cada abertura destas tem uma espécie de escorregador que o levará para cada um dos nove Círculos do Inferno. Conforme instruções do Chefe, você pode escolher seguir um roteiro lógico, do primeiro ao oitavo, ou começar pelo penúltimo ou, ainda, andar aleatoriamente… Há, sempre, galerias interligando um a outro e, portanto, fique à vontade para começar sua reportagem.

– Você disse até o oitavo ou pelo penúltimo… E se eu quiser começar pelo último?

– Não pode! O Chefe foi muito claro a respeito disto. O último círculo está fechado pra grande festa e ele pretende acompanhar você…

– Alguma sugestão então? – Ela deu um sorriso, balançou os cílios coquetemente e murmurou: – Se eu fosse você, faria o caminho lógico. Acho que seria bem mais instrutivo… – Era uma boa sugestão, eu agradeci, e caminhei para a primeira abertura. O escorregador era íngreme e cheio de curvas e lugares fechados, escuros, parecendo um estreito tobogã que eu enfrentara uma única vez… e para nunca mais fazê-lo!

O que me pareceu uma eternidade depois, bundeei num acolchoado, que deve ter sido colocado ali especialmente pra mim – tenho certeza que as almas, apesar de etéreas, se esborracham no chão duro mesmo, ou isto seria pré-conceito meu? Uma figura gorda, de rosto redondo, cabelos escorridos sobre a testa e dezenas de dentes na boca sorridente, apareceu à minha frente. Eu a conhecia, mas não sabia quem era…

– Olá, capitão… Eu tinha absoluta certeza que nunca o veria por aqui, mas o Chefe me deu mais este castigo: guia-lo pelo 1º Círculo, fazendo tudo que você mandar…

– Max…? Maximiliano…? – A imagem do meu velho algoz e do meu 4º ano de grupo escolar me surgiu nítida e em três dimensões: o garoto tímido investido, por uma professora estúpida, como ‘capitão’ da turma, com direito a uma cruz vermelha no ombro e de dedurar todos os colegas relapsos, desobedientes e que colavam provas na sala de aula. Eu era o chamado CDF (cú de ferro) e Dona Inah achou que meu exemplo seria edificante pra turma toda… Bons tempos aqueles em que uma professora civil introduzia uma postura militar pra tentar disciplinar os alunos. Azar meu, que me fudi…!

-Pois é, capitão… eu infernizei a sua vida e as de mais uma dezena de pessoas pela vida toda e vim parar aqui no Inferno, pra entender, por um bom tempo, o Inferno que criei pra tanta gente…

– Não entendi, Max… As almas perdidas que para aqui vêm são infernizadas como?

– Exatamente como elas infernizaram as vidas dos outros em vida… Vou te dar um exemplo: lembra da Iramar? Aquela branquela, neta do dono das Lojas Futurista, que chegava de carro com motorista no Grupo? E que tratava a gente como lixo? Se o Chefe tivesse mandado ela ser sua anfitriã, ela estaria vestida de empregada doméstica, com uniforme e touca e de cabeça baixa e respondendo apenas as perguntas que Sua Excelência fizesse.

– Meu Deus! – Ouviu-se um tremendo trovão,  Max deu um sorriso tímido (quem diria?) e alertou que o Chefe não gostava desta expressão, para eu evita-la, se quisesse permanecer sem escolta.

– Deixe eu me aproveitar de você, então… Cadê as outras almas penitentes deste Círculo? Só vejo você…

– E nem verá nenhuma e em nenhum outro Círculo. Cada alma vive seu próprio Inferno, não percebeu ainda?

– Estou chegando agora… Você pode… tem poder pra me explicar isto?

-O Chefe não me instruiu a respeito. Acho que ele quer que você rode um pouco pelos Círculos… Provavelmente, ele próprio esclarecerá suas dúvidas após o rolé.

– Está bem, mas acho que uma coisa você pode me esclarecer já: não acredito que você tenha vindo parar no Inferno apenas por praticar bullying contra mim e contra outras pessoas pela vida afora. O Inferno é mais seletivo, não é não?

– Claro! Eu matei minha mulher de pancada num dia que ela resolveu me encher o saco porque encontrou batom na minha cueca. Aliás, deixa eu esclarecer outra coisa: meu círculo não é mais este aqui… Eu já evoluí e só voltei aqui para recebe-lo, por que o Chefe assim mandou.

Dei um sorriso meio forçado – mesmo sendo uma alma, era a primeira vez que eu conversava com um assassino – agradeci a sinceridade e perguntei pela saída para o 2° Círculo. Ele apontou e eu me dirigi prum canto do salão. Havia uma porta, que empurrei, seguindo pelo longo corredor semi escuro com certa dificuldade, por causa da visão deficiente. De vez em quando raspava ombro ou mãos nas paredes coruscadas. Fiquei aliviado quando enxerguei uma luminosidade cada vez mais forte se aproximando. Não há alívio mais animador do que descobrir uma luz na escuridão… (continua quarta-feira)

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