No último domingo à noite, eu disse da minha preocupação com o depois do depois de amanhã, após a cirurgia que faria pra retirar um pedaço do intestino grosso. Um depois do depois de amanhã que não aconteceu por causa da burocracia, esta herança cultural portuguesa que quase 200 anos depois de nossa independência, continua governando nossas vidas. Ou seja, do ponto de vista do Estado brasileiro, não adiantou p…a* nenhuma a universalização do celular e a existência da intercomunicação internética, pois nada anda se não tiver um papelote entre um setor e outro…
Eu explico: depois da descoberta do meu carcinomazinho intestinal e da constatação de que meu plano de saúde não cobria internação hospitalar, já que meu plano foi contratado há uns 20 anos e, naquela época, eu achava que, como acontecera até então, eu nunca precisaria me internar num hospital, e me assustar com o preço da operação num hospital particular (em torno de R$100 mil, sem contar o cirurgião!), pensei em desistir. Mas aí consegui com um médico amigo, uma consulta com um oncologista de hospital público, tanto para ter uma 2ª opinião, quanto para verificar a possibilidade de, se fosse o caso, ser operado gratuitamente pelo SUS (afinal, eu pago impostos há mais de 50 anos, pô!)
Aqui, cabe um parêntesis.(Particularmente, eu não tenho nada contra o SUS ou contra a rede pública de saúde. Não só tenho uma filha que é enfermeira de um posto de saúde, como todas as vezes em que precisei de atendimento emergencial na rede pública, fui muito bem atendido (no HRAN, de Brasília, e no Centrinho, de Bauru). Mas, anos e anos vendo a grande imprensa mostrando pronto socorros e corredores de hospitais atulhados de gente, hospitais e postos de saúde carentes de pessoal e equipamentos adequados, consultas sendo marcadas para 05, 06 meses depois de pedidas, deixam qualquer um que paga um plano de saúde caro, preocupado com a ideia de se internar num hospital público. Mas, arrisquei).
Via Whats’App, o médico indicado me comunicou que eu deveria levar os exames feitos para ele dar uma olhada, no setor de proctologia, ambulatório vermelho do hospital, às 13 horas de uma 5ª feira. Fui… e conheci o sistema de triagem do hospital: no prédio comprido de portas fechadas, com bancos ao longo das paredes, duas filas se formam frente a uma das portas, uma para preferenciais e outra para normais. Mais ou menos às 13 horas, um segurança baixinho uniformizado abre e avisa: “Quem já foi triado, entra ali por aquele corredor… quem ainda não, espera um pouco.”
Nós estamos vivendo uma pandemia e isto, se é terrível por um lado, com mais de 20 mil mortes provocadas pelo vírus até agora, e com viés de alta, por outro reduziu bastante as dificuldades de certos doentes, exatamente os que precisam de atendimento emergencial e oncológico – atendimento em ambulatório e cirurgias eletivas foram suspensas em hospitais públicos e universitários. No meu caso, menos problemas ainda: o hospital indicado está liberado do atendimento de coronavírus…
Deste modo, a fila de preferenciais anda rápido e logo estou em frente a um guichê, digo o que fui fazer e a mocinha me manda seguir em frente até a próxima sala, onde outra mocinha mede minha temperatura, me entrega um papelote escrito TRIAGEM e me manda seguir pelo corredor até o tal ambulatório vermelho, onde outra mocinha me cobra o cartão do hospital, que eu não tinha. Minha filha, acompanhante, vai providenciar no local informado e eu fico na sala aguardando o cartão e o médico chegarem.
Como eu disse, há pouca gente e, logo, estou no consultório do médico, um jovem residente que olha com atenção meus exames e, demonstrando profundo conhecimento e absoluta convicção profissional, não só confirma o carcinoma intestinal em fase inicial e aparentemente sem metástase, como explica, sem omitir qualquer detalhe, minhas condições e o que é necessário que eu faça pra ser operado nos próximos 30 dias, que seria o mais conveniente. Havia apenas um senão, disse o doutor: por causa da covid19, a operação teria que ser da forma tradicional, passando a faca na barriga, e não através de vídeo-laparoscopia…
Mais um parêntesis. (A memória da gente nos prega peças sem quê nem porquê. Ao escutar o ‘passando a faca’, me veio à lembrança um choro engolido há 50 anos quando, em plena apresentação de Gilberto Gil e Os Mutantes num Festival da Record, lançando a Tropicália, me avisaram que um amigo do Diretório Estudantil do Colégio Estadual, que desaparecera há uma semana, depois de uma batida do DOPS, havia sido encontrado morto com 03 facadas na barriga…). Fecho o parêntesis, mas não mais a memória… porque a gente tem que gritar sempre que tempos sombrios e dolorosos não duram pra sempre! (continua amanhã)