Depois que a ‘gripinha’ passou (III)

Aqui na roça, os dias seguiram mais ou menos tranquilos, até mesmo quando a violência explodiu em Brasília. A gente teve que abrigar muitos parentes que corriam riscos em suas casas, mas a chácara é grande e deu pra conviver em harmonia pelas duas semanas necessárias: os acima de 60 ficaram na casa grande e os mais jovens espalharam suas barracas entre as árvores. A água era suficiente pra todo mundo, e adequada pra beber e cozinhar, apesar de ferruginosa, e a comida, depois que acabaram os mantimentos que todos trouxeram de suas casas e boa parte de minhas galinhas e patos, era buscada nos supermercados da Asa Norte ou de Sobradinho (houve só um desentendimento em todo o aquartelamento: alguém quis cozinhar o galo e eu não deixei… frango frito é muito bom, galinha velha é que dá bom caldo, já o galo teria uma dura tarefa pela frente, que era repovoar meu terreiro)

Fizemos duas incursões em busca de comida. Na primeira, fomos desprevenidos e, depois de passar por supermercados vazios em Sobradinho e descermos até Planaltina, quase fomos surpreendidos por uma multidão vinda dos lados de Brasilinha, que começou a invadir o supermercado em que estávamos. Conseguimos sair antes que a invasão fosse geral e irrestrita e tivemos a graça de não pagar nada… as caixas tinham sumido.

Na segunda, fomos mais preparados: apenas homens armados de picaretas, machados, facas, facões e minha espingarda .22, sem balas mas um bom porrete nas minhas mãos. Em duas camionetes, descemos pra Asa Norte e conseguimos comprar todo o necessário em três supermercados super vigiados por marinheiros fardados e armados até os dentes, que nos obrigaram a deixar as “poderosas armas” nas camionetes. Todos os produtos tinham limitação de venda, mas compramos e, desta vez, pagamos o suficiente para mais duas semanas, não necessárias, vez que o Mito caiu 05 dias depois, o povo começou a comemorar e a violência começou a ser controlada pelo governo emergencial.

Alias, esta queda do governo constitucional do Mito foi cinematográfica, a merecer um filme hollywoodiano. Depois de dias e dias de tumultos e confrontos violentos entre a população e as forças de segurança, a Esplanada dos Ministérios amanheceu, num domingo de céu sem nuvens, absolutamente tranquila. Movimento, apenas, de soldados do Exército, que, em 05 caminhões militares e 02 tanques, escoltaram o general Mourão, do Forte Apache até  o Palácio do Planalto, para uma conversa com o presidente. A Globo News, em plantão permanente, reuniu seu time de comentaristas e especialistas em caráter urgente, pois especulava-se que o primeiro ia derrubar o segundo, finalmente, e instalar a ditadura. Alexandre Garcia, pelas 47 emissoras de rádio que o transmitiam, pulou fora do barco bolsonário com um chiste: de Mourão a Mourão, a democracia é salva duas vezes!

Mito e Mourão já estavam há quase duas horas reunidos, quando três caminhões caçamba surgiram do nada e foram entrando de ré até a piscina refletiva  em frente do Palácio, sem que os soldados, atônitos, fizessem qualquer menção de operar os canhões dos tanques (mais tarde se soube que eles estavam desarmados, só estavam ali pra amedrontar…) Depois de acionadas as caçambas, os motoristas desapareceram em meio à correria dos soldados atônitos, achando que eles despejariam bombas. Não eram bombas… eram cadáveres, dezenas de cadáveres que, soube-se mais tarde também, tinham sido apanhados em hospitais do entorno de Brasília, mortos pelo coronavírus e pelos confrontos com as forças de segurança.

O espetáculo dantesco, televisionado pra todo o mundo, acabou com o Mito e com qualquer pretensão do general Mourão e seus generais de pijama de reimplantar uma ditadura no Brasil. Congresso e Judiciário entraram em ação imediatamente, propuseram um acordo com a cúpula militar da ativa, e providenciaram o impeachment constitucional do Mito e a ascensão de um governo emergencial presidido pelo general Mourão e com um ministério militar, à exceção das  pastas da Justiça, Saúde, Educação, Cidadania e Agricultura, com duração de 06 meses, até a eleição direta de todos os cargos eletivos do país, de vereador a presidente da República. Paralelamente, foi constituído um grupo de notáveis para redigir a nova Constituição Brasileira, que seria promulgada logo após a posse dos novos congressistas.

Assim caminha o Brasil hoje. Cá do meu canto, sentado na varanda a tomar meu uísque do fim da tarde (que está prolongado porque o horário de verão foi reinstituído), observo um casal de beija-flor que voluteia pelo jardim plantado por minha filha. Havia tempo que não apareciam passarinhos por aqui. Nos piores momentos da crise, houve muita invasão do Parque Nacional, em busca de comida ou, simplesmente, para se esconder da violência que grassava nas ruas. E animais e pássaros, que não são bestas, desapareceram. Aos poucos, retomam seus espaços. E é muito bom ver passarinhos de novo. Sinal que a vida renasce sempre. Que sempre há esperança… e que sonhar é possível!

 

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