2. Donald versus Donald
No dia aprazado, chegamos ao aeroporto de Brasília com 03 horas de antecedência, vez que mineiro não perde trem, inda mais trem que voa… De cara, a primeira vacilada típica de velho: na semana anterior, eu anotei tudo que precisava levar pra viagem, desde o número de cuecas até o cortador de unhas e, no dia anterior, conferi a lista e fechei a mala confiante. E esqueci da bengala!
A segunda vacilada foi mais chocante: pra comprar as passagens, eu pesquisei preços (mineiro é econômico) e marquei Brasília/Washington, via São Paulo, e só no check in fui perceber que ia aterrissar em Congonhas e embarcar em Guarulhos… Ou seja: depois de esperar um ônibus da LATAM por 01 hora, vigiando as malas, tivemos que atravessar São Paulo na hora do rush das 18 horas. Felizmente, o voo pra Nova Iorque só sairia às 23 horas.
Com duas vaciladas destas, nem um pouco desanimadoras pra minha mente ansiosa pela aventura – batucava ela: aventura sem erros não é aventura! – Nova Iorque era uma certeza compensatória: a capital do mundo, que vive intensamente 24 horas por dia, ia injetar a vitalidade que eu vinha perdendo nos últimos tempos, ia me repor a vontade de continuar vivendo cada dia como se fosse o primeiro de uma ainda longa e prazerosa jornada.
A caminhada pelo aeroporto, como em todos os aeroportos, é longa. Corredores, escadas rolantes, salas de espera lotadas. O coronavírus já começou a incomodar, mas ninguém quer cancelar seus sonhos nova-iorquinos ou maiâmicos ou pra Assunción. Livre de empregadas domésticas viajando pra Disney, a brasileirada classe média alta se mantém atenta, coloca máscaras nos rostos, senta, vai ao banheiro, lava as mãos com água e sabão, senta de novo e aguarda o embarque, ansiosa, todos juntos… (a separação social ainda não fora aconselhada).
E vem a chamada para o embarque: sou preferencial e fico na segunda fila (a primeira é dos endinheirados). Mas dou azar na entrada do avião. Passada a área de ricos, a fila estaciona exatamente comigo: um cidadão entrevado numa cadeira de rodas não consegue ser instalado nos assentos comprados. Mexe daqui, vira dali, chama a aeromoça, o comandante, passageiros dão palpites… Como resolver a questão? Os aeromoços descobrem que a fileira do assento nº 15, no meio, é accessível ao cadeirante. Era o meu assento! Instalam-no lá e só aí, com todo mundo me olhando, me perguntam se eu concordo. Sorte minha: os assentos dele e de suas acompanhantes eram os primeiros, com mais espaço para as pernas. Eu e Lara pudemos ocupar três assentos, propícios para o sono da madrugada.
Como eu durmo pouco, pude perceber a movimentação dos passageiros. Na segunda carreira de poltronas do meio, havia um senhor, sem máscara, que tossia constantemente. Mesmo assim, os passageiros ao seu lado, bem como os das poltronas imediatamente à frente e atrás, mantinham suas máscaras baixadas em volta do pescoço. Mas, quando se levantavam para ir ao banheiro, colocavam as máscaras no rosto… A mesma coisa no desembarque: todos se mostravam informados e obedientes às instruções contra o coronavírus… apenas na hora em que precisavam demonstrar isto para os outros!
Desembarcamos lá às 08 horas da manhã. Aeroporto JFK. Imenso. Corredores, escadas rolantes, polícia alfandegária, carimbos nos passaportes, tira casaco, cinto, sapatos, celular, relógio, caneta, óculos, o portal não apita e a gente segue por mais corredores e escadas rolantes. No caminho, um guarda negro, como a maioria: “Welcome, brazilians… you’re very braves!”. Fiquei em dúvida se seríamos corajosos pelo coronavírus, que já começara a assustar todo mundo, ou pela desvalorização do real frente ao dólar (afinal, se continuasse assim, logo eu seria apenas um velho brasileiro sem dinheiro no banco…!)
Tentamos usar o celular pra chamar um Uber, mas não conseguimos. Três malas, duas pesadas, e uma pasta carregada no ombro, machucando um corte ainda com pontos, o jeito era pegar um famoso yellow cab. Saímos do aeroporto e o frio enregelante me pegou de cheio: o casacão não foi suficiente e ainda estava sem luvas. Agora que vou saber se vacina anti-gripal funciona mesmo, pensei. Lara deu a direção, Times Square, e o taxi driver, um negro de fala pausada e quase compreensível (Uff!), indicou o preço: US$68. Como praticamente tudo nos Estados Unidos implica em gorjeta, uma obrigação natural, a corrida ficou em US$80! (Eu não devia, mas não resisti: 80 x 5 = R$400,00… Vamos voltar, Lara?)
Eu sou de uma época em que só existiam revistas em quadrinhos com personagens americanos, Batman, Mandrake, Tarzan, que é inglês na verdade… E Mickey, Tio Patinhas… e Donald! Eu detestava Mickey, pela sua esperteza, sua superioridade, pela racionalidade, enfim… Sendo eu um tímido crônico, os destemperos, as atitudes emocionais e as derrotas invitáveis de Donald me atraíam muito mais. Pois, com toda a sua fraqueza ´humana´, Donald também era um herói.
Lembro isto porque eu estou na terra de Donald, agora sob o comando de outro Donald, um Mickey bilionário, tão esperto, superior e racional quanto o original, mas, diferente dele, um membro ativo dos Irmãos Metralha, que acha que o mundo gira em torno de seu umbigo e existe apenas para servi-lo e aos seus. Deste Donald eu quero distância, apesar de sua ‘America´s First´ estar visível até mesmo aqui em Nova Iorque, capital do mundo: assim como no Brasil bolsonário, com painéis, outdoors e pendoes verde-amarelos espalhados por muitos cantos, o listrado vermelho-azul também colore a cidade ora cinza, neste final de inverno. Ambos se prepararam para guerras contra inimigos reais e imaginários. O inimigo chegou, mas mísseis e arminhas não adiantam p…a* nenhuma! (continua amanhã)