1. Mente versus corpo
Tempos atrás eu escrevi o que chamei de minha última aventura: um setentão que se juntou a jovens e crianças para explorar a Chapada dos Veadeiros. Consegui subir até uma trilha íngreme no meio da mata me agarrando a um cajado, na verdade um galho de árvore, invejando uma neta que saltava à minha frente, me incentivando a continuar subindo, apesar do meio metro de língua pra fora.
Cheguei ao objeto de desejo do grupo, uma linda cachoeira, quase morto, mas, mesmo me arrastando, voltei vivo para a pousada, e com um compromisso que firmara comigo mesmo enquanto mergulhava os pés doloridos na refrescante água da cachoeira: minha longa vida aventureira terminava ali. Eu tinha que aceitar o fato de que a velhice chegara, mesmo que o espírito continuasse se achando o príncipe encantado que despertou Branca de Neve com um roçar de lábios. Na realidade, compromissos firmados sob agonia não são muito firmes, como se verá a seguir.
Minha mãe morreu há pouco, com quase cem anos. Nos últimos tempos, ainda muito lúcida, mas não tão ativa mais, costumava dizer, sob meus sinceros protestos, que manter a lucidez quando o corpo vai envelhecendo, era um castigo pior que a morte. A mente permanece viva, cobrando posturas e ações de um corpo que não mais consegue mantê-las ou executá-las. E me encostava na parede com uma pergunta irrespondível: qual o sentido de continuar viva, se não consigo nem mais passar batom direito?
Como nunca consegui responder a ela e, muito menos, convencê-la do contrário, decidi provar pra mim mesmo que eu estava certo e que, mesmo com o corpo pedindo calma e recolhimento e a visão cada vez mais deficiente, eu podia obedecer a mente, que insistia por mais uma aventura. Assim, descumpri meu compromisso e programei outra arrogância mental, uma viagem há muito desejada: Washington, passando por Havana e Nova Iorque.
Ora, direis, viajar de avião não é nenhuma aventura! E eu replico: para um setentão semi-cego, qualquer deslocamento de casa, de avião, de carro, de metrô ou à pé, é uma grande, torturante aventura, não apenas pela insegurança natural no agir – que balcão procurar? Por onde caminhar? Onde fica o banheiro? – e pra fazer coisas tão simples pra qualquer mortal, mas também pela dependência inevitável de alguém para acompanhar e resolver estas coisas tão simples.
E há, claro, a pergunta irrespondível para minha mãe a contrapor-se à vontade de minha mente irresponsável: pra que continuar vivo se até pra ir ao banheiro você precisa de ajuda? Mas meu coração aliou-se à mente, que contrapôs vitoriosa: você tem razões mais profundas e verdadeiras do que, simplesmente, provar a si mesmo que ainda vale a pena viver: rever suas filhas e netos, conhecer suas casas, seus trabalhos, suas escolas, talvez a última chance da fazê-lo, além da perspectiva de conhecer o país que teve forte influência em sua formação política.
Havia, ainda, outro motivo de convencimento eficaz: minha filha caçula, escolada em viagens internacionais, me guiaria. Enfim, a mente venceu, para desconsolo do meu corpo, que ainda tentou alguns revertérios, primeiro com os custos da viagem e, depois, com os primeiros alertas sobre o coronavírus. Os custos foram resolvidos com a finalização da partilha financeira da herança de minha mãe e o coronavírus foi ignorado, já que ainda estava restrito à Wuhan, que já fora totalmente isolada pelo governo chinês.
Decidida a parada, enfrentei os primeiros desafios: acertar o roteiro, comprar as passagens e reservar as hospedagens. Uma primeira dúvida: Brasília/Havana/Nova Iorque/ Washington/Brasília ou Brasília/Nova Iorque/Washington/Havana/Brasília. Fui me informar e vi que entrar nos Estados Unidos a partir de Cuba é fria. O bloqueio, que havia sido suavizado pelo Obama, voltou a endurecer com Trump.
Optei pelo segundo mas, logo, descobri que era mais fria ainda. Conversei com minhas filhas e fui apresentado a dois obstáculos: o visto para entrar em Cuba só pode ser emitido pelas próprias companhias aéreas nos Estados Unidos e há um formulário a ser preenchido que indica 13 possibilidades para você obtê-lo: nenhuma delas é para fazer turismo. Como já tinha comprado passagens pela Delta Airlines, via Atlanta, tive que cancelar, pagando multa, e comprar outra, pela Copa Airlines, via Panamá City. (continua amanhã)