Deu-se que estava eu a exercitar-me numa esteira quando tudo se apagou. Flutuando por sobre meu corpo caído e com uma perna ralando sobre a esteira, que continuava girando, comecei a gritar. Ninguém ouviu, parece! Sorte minha, ou dos parentes, que um deles saiu pra cuidar dos cachorros e viu meu corpo estirado no chão. Apavorou-se, começou a apalpar meu pulso, o coração… Felizmente, não fez respiração boca a boca! Gritou por outros parentes, ligou pro SAMU, que demorou um pouco – eu moro, ou morava longe – que constatou: “Está morto!”
A voz pesarosa do médico não me assustou; ao contrário, despertou minha consciência crítica e eu me perguntei: se eu morri, o que estou fazendo aqui em cima, flutuando sobre os vivos? Virei alma penada, por acaso? E tratei de voltar para meu corpo, talvez com a leve esperança de, voltando, eu reencarnar. Não revivi… morto estava e morto permaneci.
Não pretendo cansar os olhos de ninguém descrevendo o tempo final de meu corpo, desde seu preparo até a entrada do caixão no túmulo da família, nem os possíveis lamentos, choros e, quem sabe?, um ou outro sorriso feliz disfarçado em cara compungida durante as cerimônias fúnebres… mesmo porque eu nada vi. Tão logo retornei ao corpo, minha alma foi como que aspirada e, flutuando suavemente, ascendeu para um lugar que, presumi, fosse um espaço entre o Céu e o Inferno.
Fiquei feliz: eu tinha escrito sobre este espaço, a que dei o nome de Corredor da Passagem para o Grande Vestíbulo, e, tudo indicava, era para ele que eu tinha ido (ver Deus e o Diabo no céu da Terra I/V). Ao mesmo tempo, comecei a ser tomado por uma crescente sensação de medo: apesar de ter me metido a descrever o reino de Deus, com vaga menção ao do Diabo, eu passei toda a minha vida mortal negando a existência Dele. E, me pareceu, era exatamente no Reino Dele onde eu fora parar.
Enfim, o que foi feito, feito está… e, agora, era enfrentar a fera! Se é que eu teria esta chance e não fosse chutado direto pro Inferno, o que seria um contrassenso Dele. Afinal, se eu não O visse cara a cara, continuaria negando Sua existência…! Besteira! – pensei – se eu fosse pro Inferno, eu iria ver Lúcifer e, se visse Lúcifer, era óbvia a existência de Deus… o Bem e o Mal são inseparáveis! E me preparei para o pior…
Havia muitas almas flutuando lentamente pelo extenso Corredor, todas em absoluto silêncio. Vez por outra, figuras brancas de asas sobrevoavam a fila, parando aqui e ali, apontando uma alma. Silenciosamente, ela se retirava da fila, era alçada pela figura (um anjo, com certeza), desaparecendo ambos por entre nuvens, às vezes brancas, às vezes, escuras.
De repente, me deparei com o Grande Vestíbulo. E como era grande o Grande Vestíbulo! E como tinha almas o Grande Vestíbulo! Mas tudo muito bem organizado, é preciso reconhecer. As almas serpenteavam ordenada e ordeiramente por ele, sem gritos, sem tumultos, sem sair do traçado, uma atrás da outra, flutuando suavemente até um portal eletrônico, que emitia os únicos sons ouvidos no local: um, dois ou três gongos.
Lentamente, flutuei pela serpentina álmica, numa esperança óbvia que fosse conduzido, como havia escrito, para a fila dos preferenciais. Não fui. E cheguei, um bom tempo depois, ao portal. Bem condicionado aos costumes terrestres, busquei o espaço pra colocar celular, chaves, caneta e moedas antes de passar pelo portal, mas não encontrei… nem o espaço, nem os bens! E nem precisava! Almas não possuem bolsos, nem celulares, chaves, caneta ou moedas, mesmo que recém-chegadas de sua vida corpórea, e mesmo que tenham sido enterradas com seus bens mais preciosos.
Entrei no portal meio nervoso, porque não recordava exatamente o que escrevera sobre o significado dos gongos. Forcei a memória e me lembrei que, honestamente, eu não me enquadrava em nenhuma classificação de gongadas que descrevera: eu não tinha, ao morrer, nenhum sinal de religiosidade no corpo (o cordão de Cristo que carreguei no pescoço fora colocado na gaveta quando me separei da segunda mulher, que o havia me dado); apesar de agnóstico, nunca fui anticristão ou comunista e sempre detestei tatuagens no corpo e, pelo menos para minha própria auto estima, nunca me omiti perante a vida, vivendo-a plenamente. Morrera num de repente, claro, mas dentro das possibilidades de morte nas estatísticas humanas, pois já passara dos 70 anos.
A única reclamação é que, velho pelo padrão terreno, eu não me sentia velho ainda… O corpo já rateava, mas a mente estava lúcida e funcional. Será que Deus não gostara da forma que eu descrevera Seu Reino? (continua quarta-feira)