Enfim, a realidade brasileira é esta: mesmo numa região dotada de alguma influência política (os usuários das chácaras são, em sua maioria, gente de posses e bem relacionados com o poder), a 30 km do centro da capital federal, o Estado tem muito pouco a oferecer à comunidade menos abastada. Imaginem nas periferias e favelas das grandes cidades ou nos pequenos municípios perdidos na imensidão do Brasil…
Neste contexto, este poder público indiferente ou inoperante, pelo menos nos campos infraestrutural, educacional e moral, vem sendo substituído, nestas localidades, pelas mais variadas entidades religiosas, especialmente as de vinculação evangélica e neopentecostal, algumas com verdadeiro espírito cristão, mas muitas, infelizmente, com intuito exclusivo de enriquecimento próprio, fundamentadas numa interpretação teológica da bíblia que indica a prosperidade como meta maior do ser humano, não importa a que custo.
Ou seja, o Estado necessariamente laico exigido por uma democracia constitucional está, aos poucos, sendo envolvido por posições dogmáticas, onde a diversidade real e objetiva que é natural na humanidade torna-se desprezível, uma imperfeição da natureza que precisa ser corrigida ou, em caso de rebeldia, ser isolada ou, mesmo, eliminada da convivência em sociedade.
Isto é um erro monumental, que terá consequências desastrosas para o país a médio prazo. Tenho certeza que a maior população católica do mundo ouviu falar, alguma vez, em Inquisição. No mínimo, sabe que foi um movimento da Igreja Católica de defesa da fé cristã e combate à heresia. O que a maioria desta população não sabe é que por trás das razões religiosas dos Tribunais Inquisitoriais criados a partir do século XII, sempre esteve a manutenção e defesa do poder, fosse da Igreja de Roma (um poder imperial como qualquer outro naquela época), fosse dos reis, todos católicos.
Estado e Igreja tornaram-se algozes de minorias, transformando adversários políticos ou religiosos em inimigos do Estado e de Deus. Neste jogo, estima-se que 150 mil pessoas foram presas e julgadas por tribunais inquisitoriais e 03 mil foram queimadas vivas, a pedradas, a cacetadas ou torturadas até a morte. Em nome de Deus…
(Parêntesis necessário para quem assistir o vídeo até o fim: observem que todos os exemplos de “hereges” queimados no Brasil são mulheres, o que me leva a ficar mais apavorado ainda com a pregação de dona Damares; e está aí uma boa explicação para o ódio que autoridades de hoje, como o Mito, seu ministro (sic) da Educação e secretários na Cultura, dedicam à esta, à Universidades, a museus e bibliotecas: afinal de contas, ler livros e conhecer a história, para eles, fazem mal à saúde…)
Enfim, não se pode organizar e gerir uma estrutura física com base em conceitos e normas espirituais. Deus criou o Universo, as coisas e os seres que nele vivem, mas deu aos seres humanos o livre arbítrio, significando isto que até não acreditar em Deus era e é um direito de qualquer ser humano. Por que então um agnóstico como eu, por exemplo, teria que aceitar uma regra de abstinência sexual na juventude, imposta por uma ministra de um Estado cujo lema é “Deus acima de todos”? (Outro parêntesis: o vídeo ilustra a matéria, mas vê-lo é dispensável… não me responsabilizo pelo vômito!)
Voltando ao meu jovem amigo, a base do nosso entrevero escrito foi político: eu fiz um post sobre o preço atual da gasolina e o silêncio das panelas e ele retrucou que na época das panelas e camisas amarelas o preço também estava bem alto. Post pra cá, post pra lá, eu afirmei que as mobilizações passadas tinham ingredientes ocultos: “Como diria Shakespeare, se vivesse hoje, há mais coisas entre o poder e a classe média do que sonha nossa vã filosofia”.
E ele rebateu que concordava com Shakespeare, me dando a entender que entre o poder e tudo o mais, classe, posição política, pessoas e coisas, há um poder muito superior à nossa vã filosofia”.
Tem razão ele. Talvez Deus exista, mas não dê bola mais para sua criação, porque dotou-a do livre arbítrio, e cada cria que se vire pela vida. Ou, talvez, Deus tenha sido uma criação dos homens, justamente para explicar as coisas inexplicáveis que, mesmo com toda filosofia e todo conhecimento, eles não consigam ou não queiram entender e praticar. Como a miséria, a fome, a violência, a avareza, a traição, o ódio, a falta de respeito do ser humano pelo ser humano… Ou como o amor pelos semelhantes, como o filho de Deus prega há 2 mil anos… Fato é que uma coisa há entre o céu e a terra que é muito maior que a nossa vã filosofia: o vil metal e o poder que ele tem sobre os homens, especialmente os que já o tem, que o usa, sem contemplação, para ter e manter seu poder sobre os que não o tem. (fim)