2. O grande Vestíbulo
Diferentemente do que disseram grandes ecumenistas e estudiosos das coisas do Além, quando da morte dos seres humanos, as almas desprendidas não têm uma direção já definida de acordo com o seu comportamento na Terra. Elas têm que passar por uma espécie de vestibular sem provas escritas, pois é mais íntimo e intenso, doloroso até às vezes, como se fosse um interrogatório numa delegacia policial, em que a alma se identifica física e espiritualmente, respondendo uma série de perguntas formuladas por anjos graduados em cabines individuais à prova de som e por santos do panteão celestial.
Ou seja: todas as almas – com exceção daquelas que, nos primeiros momentos da morte não se conformam de terem morrido e ficam tentando se agarrar a qualquer ser vivente que passa por perto, mesmo um vira latas, as chamadas almas penadas – são dirigidas para o Grande Vestíbulo, um espaço composto de três grandes salões e uma sala menor um pouco afastada. Para chegar lá, há um imenso corredor denominado Corredor da Passagem, cuja entrada se perde no infinito, por onde as almas vão entrando, e cuja saída se abre para várias cabines individuais, onde guichês separam as almas dos Anjos Conferentes.
Antes de entrar num guichê, a alma passa por um detector de ações pretéritas, que emite um, dois ou três gongos budistas, de acordo com a aparência física e o pendor espiritual que o corpo detentor daquela alma se apresentou perante seu destino final. Dependendo das gongadas, as almas são carreadas, uma a uma, para as cabines da direita, da esquerda ou do centro. E há algumas que são retiradas da fila antes das cabines e colocadas noutra fila, bem menor, em frente à saleta afastada. São as chamadas preferenciais, que permanecem ali até serem chamadas nominalmente.
Um gongo significa que o corpo, ao morrer, carregava um terço ou a bíblia na mão ou um crucifixo num cordão ao pescoço ou um santinho na carteira ou mostrava convicto arrependimento pelos pecados cometidos; dois gongos significam que o corpo escondia algum sinal de descrença ou ateísmo, seja porque fez uma grande contribuição financeira para a Igreja ou Templo pouco antes de morrer ou porque amaldiçoara os parentes por não enterrarem suas jóias, ações e dinheiro vivo junto com ele (o que o ajudaria, pensava ele, a comprar seu lugar no Céu) ou porque fizera questão de ser enterrado com o Livro Vermelho de Mao ou Das Kapital, de Marx, ou, ainda, tinha no corpo tatuagens de suástica, foice e martelo, sigma, belzebu ou símbolos fálicos; e três gongos significam que o corpo não tinha marcas de qualquer espécie, ou seja, passara pela vida sem tugir nem mugir, fazendo mecanicamente o que lhe foi biologicamente incutido e ensinado desde o momento em que foi concebido, tenha este momento sido de dor, de amor ou desprovido de qualquer emoção. Três gongos também recebem as chamadas almas inesperadas, aquelas pegas de surpresa por um cataclisma natural, não ordenado por Deus – terremotos, maremotos, vulcões em erupção, enchentes ou secas tórridas – ou desastres e morticínios provocados pela violência, incompetência ou ganância humanas.
Seguindo para as cabines, as almas são identificadas – nome, idade, profissão, residência, bens, religião, familiares vivos e mortos. A cada resposta, o Anjo Verificador tica no computador, confirmando a resposta dada com os dados disponíveis no cadastro álmico. Uma ou outra vez, ele preenche o dado informado, uma ou outra vez ele deleta e corrige a informação constante (apesar da infalibilidade de Deus, errar é angelical também!).
Cadastro em ordem, a alma recebe uma ficha gravada com o nome de um santo e se encaminha para um dos grandes salões, para o ato final do Grande Vestíbulo: a entrevista com um santo, depois da qual, conforme a avaliação santificada, ela recebe um habeas corpus para o Purgatório, um passe livre para o Céu ou um pé na bunda para um outro salão abaixo, onde Satanás e velhos diabos saltitantes e estridentes, com seus tridentes afiados, a aguardam para outra infindável sessão de interrogatórios, com possibilidades de torturas, dependendo da atitude mais ou menos colaborativa da alma.
Quem recebe passe livre está, definitiva e eternamente no Paraíso. E o Paraíso é o paraíso! Não há, na verdade, muita coisa que fazer por lá. Uma alma pode passear por paisagens maravilhosas, pode entrar num salão para ouvir músicas celestiais ou, mesmo, shows de artistas de seu tempo, pode reencontrar velhos amigos e parentes, pode bater papo com os santos de sua devoção e até ouvir, numa grande arena ao ar livre, palestras de Jesus Cristo, Ghandi, Buda, Einstein ou até de São Tomás de Aquino. Um tédio, se fossem corpos e não almas. Mas há uma paz, uma tranquilidade, uma harmonia tal que elas se sentem realmente num paraíso.
Quem leva pé na bunda tem certeza imediata que o Inferno é logo ali. Existem, realmente, 09 círculos no reino de Lúcifer, mas nada de furacões e turbilhões de vento, lama suja, granizo, vômito, sangue fervente e coisas tais, onde as almas viverão mergulhadas até o pescoço… Os 09 círculos têm um único objetivo e é a própria alma que escolhe qual círculo que ela prefere ir. O 6° Círculo, por exemplo, é o dos Amigos do Bar: a alma se encontra com seus parceiros de boteco como fazia toda sexta-feira depois do expediente. Birita, futebol, mulher, fofocas, xingamentos, gozações mis… Já o 3° Círculo é o Lar, Doce Lar: a alma reencontra seu ou sua cônjuge em seu lar, toma café, almoça, janta, assiste televisão, faz amor… Tudo isto de forma eterna! O Inferno, enfim, é a rotina da vida vivida dia e noite para todo o sempre…
Por fim, quem recebe o habeas corpus é conduzido para uma estação de metrô atrás do salão central. Antigamente, como descreveu Dante n‘A Divina Comédia’, havia um rio, o Aqueronte, que precisa ser atravessado de barco para se chegar ao Purgatório (Dante foi mal informado à época e escreveu que o rio levava ao Inferno). Este rio não existe mais e Caronte, o velho barqueiro, foi reciclado e transformou-se em condutor de metrô. É que durante as duas grandes guerras na Europa, morreram muitos madeireiros, mineradores e fazendeiros convocados para as lutas. E, como morreram pela ganância e violência dos próprios líderes, foram para o Purgatório, onde exploraram tanto a área que o meio ambiente se fu…* E o Aqueronte secou.
Exatamente por causa desta situação embaraçosa para Deus – a destruição ambiental do Purgatório – o Todo Poderoso resolveu criar uma outra Instância de julgamento para os portadores de habeas-corpus, a que deu o nome de Juízo de Garantias. Depois do interrogatório nas cabines e da entrevista com os santos, as almas destinadas ao Purgatório, enquanto aguardam a partida do metrô, passam pela avaliação de Jesus Cristo e Nossa Senhora. Ele é um pouco rebelde, pacifista, socialista, ambientalista fervoroso, feminista, anti racista e vive se desentendo com o Espírito Santo e alguns santos guerreiros; ela é maternal, conservadora, não aprecia certos modernismos e se apega muito à sua eterna condição de virgem, o que, imaginou Deus, garantiria um bom embate na disputa pelas almas que passaram pela vida e não viveram e as inesperadamente desprendidas de seus corpos, encaminhando-as mais rapidamente para o Céu ou o Inferno, evitando uma longa temporada no Purgatório. Deus, o pai de todos, tem consciência que seres humanos, especialmente os que só passaram pela vida ou os que morreram antes do tempo, sem vivê-la na plenitude, são fracos e influenciáveis, pobres coitados, como diz Maria, e bovinos, como diz Jesus. Mas não quer o mal e a eterna dúvida de nenhum deles. (continua amanhã)