Voluntariar-se

Na noite de natal, este ateu convicto escreveu um texto natalino no blog. Minha filha mais velha, que mora longe, não gostou. E me mandou aquela carinha feia dos emojis . Eu perguntei porque, ela disse que era triste. Eu repliquei que o natal é triste hoje, e ela treplicou: “Um bom jeito de combater qualquer tristeza é voluntariar o tempo pra ajudar quem precisa. Tem algum orfanato, escola, asilo perto de vc?”

Na madrugada sem sono, fiquei matutando sobre isto. Ela havia me mandado, no noite de natal, fotos dela, do marido e dos filhos voluntariando-se, uma atitude tradicional em datas determinadas em países católicos, em que pessoas mais bem aquinhoadas pela vida dedicam um tempo desta data para propiciar alegria e esperança para aqueles que, por uma série de contingências, conseguem apenas sobreviver no mundo de hoje.

Não tenho nada contra o voluntarismo cristão ou de qualquer religião ou grupo social. Nem contra a maioria das pessoas que, como minha filha, o praticam, numa espécie de corrente solidária que enobrece  seres humanos. A imensa maioria das pessoas é frágil e dependente. Se existem outras mais fortes, vencedoras, que se lembram disto e se voluntariam para ajudá-las, tenho absoluta certeza que o fazem com a mais bela das intenções, o amor ao próximo, um dos mais belos ensinamentos de Cristo.

Este tipo de voluntarismo eu fiz algumas vezes quando era jovem, bem jovem. Levado por meu irmão, entrei num “grupo de Maria”, cuja função era levar carinho e conforto a velhos de asilos mantidos pelo Estado de Minas Gerais. Fiz tais visitas umas 04 vezes e saí do grupo sem qualquer possibilidade de volta. Acho que foi exatamente a partir daí que me tornei um ateu convicto!

O procedimento era simples: 05 a 06 adolescentes acompanhados de 02 jovens mais velhos iam para um determinado asilo em dias de visita e passavam lá uma a duas horas conversando com velhinhos e velhinhas que não recebiam visitas – não havia parentes mais ou tais parentes não tinham qualquer interesse em visitá-los. Era uma ação cristã e louvável, claro, mas extremamente angustiante para mim: o que conversar com pessoas que nada tinham a dizer, a não ser repetir a horrível rotina diária que viviam? Perguntar dos filhos ou filhas mortos ou ‘desaparecidos’? Comentar notícias e músicas ouvidas no rádio (televisão era recente no Brasil… e cara! Nenhum asilo tinha).

Quando disse para uma das jovens que costumava acompanhar e monitorar nossas visitas que eu não faria mais aquilo, ela ficou brava, disse que eu não tinha coração e reuniu o grupo, na presença de outros monitores e do padre, para apontar minha atitude egoísta, desumana, anti-cristã… Eu fui ficando vermelho, um nó na garganta, uma vontade de sair correndo…

Aí me lembrei do padre Carlos, do Grupo Escolar, me dizendo, no dia em que eu ia ganhar uma medalha por ser um dos melhores alunos da turma, que eu não entraria no Céu e,  apesar da timidez medrosa, me levantei do banco e respondi: “Isto é besteira! Não tem sentido vocês levarem a gente pra conversar com velhos e velhas… A gente não tem nada pra dizer pra eles! O máximo que eu posso fazer é ficar lá segurando a mão da senhora, fazendo-a lembrar que teve filhos e chorar… Que conforto é este? Porque vocês não levam pessoas mais velhas que podem conversar, contar histórias e consolar?

Depois disso, não voltei mais para o grupo. E, ao que me lembre, nunca mais participei de grupos de voluntários ou de asssociações solidárias que se organizam com o objetivo de atender pessoas carentes em determinadas datas simbólicas do ano, como o Noatal e o Dia das Crianças. E não é por ateísmo ou egoísmo ou por ter coração de pedra, não!

Eu aprendi, ao longo da vida, que eu faço mais pelas pessoas menos abonadas por ela,  lutando para que elas tenham seus direitos respeitados, para que elas tenham condições de lutar por uma vida mais digna, e para que elas tenham voz numa comunidade, do que arrecadando cestas básicas, roupas de inverno e brinquedos  três vezes por ano… e nada mais!

É o que fiz na faculdade, quando presidi o Diretório Acadêmico, é o que fiz como profissional, quando participei da associação dos empregados, é o que venho tentando fazer desde que me mudei para uma área rural nos arredores de Brasília. As vitórias são pequenas, demoradas, custosas, muito dependentes dos humores político-administrativos. Mas existem, e valem a pena quando conquistadas, porque são definitivas. E melhoram o mundo em que eu vivo. Um grão de areia, talvez, mas que pode ser encontrado em todas as partes do mundo.

Não quer dizer que eu não apoie as iniciativas de lideranças locais, sejam de igrejas, sejam de sociedades beneficentes em suas campanhas periódicas. Ao contrário, apóio, divulgo, dôo, mas… cada vez me convenço mais que tais lideranças, com as exceções de praxe, fazem tais campanhas muito mais por interesse próprio, ou para se firmar como liderança confiável da comunidade, ou para “comprar” seu lugarzinho no Céu.

O que, tenho certeza, é perda de tempo. Se Deus existir, ele não é corretor de imóveis e, se não existir, a terra é fria, cheia de vermes e igual pra todo mundo.

 

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