O barulho roc-roc-roc chegou-lhe aos ouvidos, mas ele não se apercebeu, logo, que o roc-roc-roc do barulho vinha de bem perto, de dentro de casa, de dentro da sala. Quando percebeu, o roc-roc-roc estava dentro de seus ouvidos. E ele se levantou e foi à sala. Nela, uma mulher de macacão azul, trepada numa escada, serrava roc-roc-roc sua árvore de estimação.
Ele se assustou. Como uma mulher podia estar usando um macacão azul e manusear um serrote? Isto era roupa e serviço de homem! Então, perguntou: “Você é mulher?” Não houve resposta nem o roc-roc-roc parou. E ele insistiu: “O que você está fazendo aí?” E a mulher de macacão azul, sem olhar pra ele e sem parar o roc-roc-roc, disse: “Serrando…” E ele: “Com ordem de quem?” A mulher parou de serrar e olhando-o como se ele estivesse enchendo o saco que ela não tinha, não disse nada.
E ele, meio constrangido: “Bom, pode parar por aí, que eu vou saber quem deu a ordem.” E pensou: “Quem cuida ou descuida ou serra ou desserra árvores no Brasil é o iceêmebio…”
Voltou pro escritório, abriu o Google e procurou: iceemebio… o que quer dizer mesmo iceêmebio? E achou e ligou: “Alô! É do iceêmebio? Eu queria falar com reclamações…“Um momentinho”, respondeu o telefone. “Alô… reclamações? É o seguinte: tem uma mulher de macacão azul serrando minha árvore de estimação… E o telefone, com uma irritada voz feminina: “Mulher de macacão azul? Não é nosso! Nossos homens usam macacão verde e nós não temos mulheres neste serviço… é muito perigoso pra elas! Deve ser da prefeitura, que é muito modernosa!” E ele pediu desculpas e desligou e buscou reclamações na prefeitura, pelo Google de novo. Discou e ninguém atendeu.
Discou de novo. E uma voz metálica respondeu: “Por motivo de ordem técnica, a prefeitura não está atendendo reclamações por telefone. Favor se dirigir pessoalmente ao guichê 32, andar térreo da prefeitura municipal, no horário comercial. Agradecemos sua compreensão. Mais uma realização João Príamo, trabalhando para você.”
Ele olhou o relógio, viu a hora e voltou para a sala e falou para a mulher de macacão azul que fumava na escada, com o serrote enfiado na árvore: você espera aqui, tome um café, tem biscoitos na lata ao lado, , que eu vou fazer uma reclamação na prefeitura. A mulher sorriu superiora de cima da escada e desceu. E ele saiu.
Apressadamente, ele tomou o rumo da prefeitura, que não era longe. Sentia-se um tanto ou quanto constrangido, pois não gostava de fazer reclamações. Vivia sua vida, pagava seus impostos e não dava satisfações… e nem pedia satisfações. Não votava e nem era votado, como se dizia. Mas sua árvore de estimação, companheira de tantos anos… merecia uma atitude fora dos padrões. E melhor sorte que ser serrada por uma mulher de macacão azul!
Chegou à prefeitura, que não era longe… Andar térreo, guichê… guichê… guichê 32… Mais uma realização… Aqui! Duas pessoas na fila, todo mundo era como ele… não votava, nem…A quase fila deu um passo.
Qual era a reclamação mesmo? Ah! Uma mulher de macacão azul está cortando sua árvore de estimação dentro de sua sala. Que direito tinha a prefeitura de invadir sua privacidade, o sacrossanto recesso de seu lar, e serrar uma árvore que era sua e que estava dentro de sua casa? Que direito… Não! Muito incisivo! A mulher do guichê tinha boca de poucos amigos. E que direito tinha ele de contestar uma determinação de autoridade competente, aliás exercendo sua competência em nome do povo? A quase fila deu outro passo. E ele ficou frente à frente com o vidro embaçado com um buraco redondo no meio, do guichê.
A boca vermelha atrás do guichê perguntou mecanicamente: “Pois não! Em que podemos ajuda-lo?” Ele sorriu e baixou a cabeça até o buraco, pra ver se a mulher via seu sorriso, e desculpando-se com os olhos, que a boca vermelha não viu: eu tenho uma reclamação a fazer… E a boca vermelha atrás do guichê sorriu, o que ele viu, e disse novamente: “Pois não…” E ele, suavemente, disse da mulher de macacão azul que estava serrando sua árvore de estimação dentro de sua sala. A boca vermelha atrás do guichê disse: “Um momento, por favor…” E sorriu. E ele sorriu também, e calou-se.
Daí, a boca vermelha atrás do guichê, ainda sorrindo, perguntou nome e endereço. E ele disse. E ele ouviu barulho e sentiu o movimento de dedos digitando teclas com velocidade até que a boca vermelha atrás do guichê voltou a sorrir mais abertamente e disse: “Sinto muito, senhor, mas aqui não consta nada sobre algum trabalho de corte de árvore de estimação no setor que o cidadão reside… Mas, para evitar burocratizações desnecessárias, o senhor tenha a bondade de procurar dona Arli, na sala 203, 2° andar à direita , Seção de Preservação do Ambiente Residencial Urbano, e conferir esta minha informação… Muito obrigada, foi um prazer ajudá-lo e tenha um bom dia… E dedos saíram por baixo do vidro embaçado do guichê e lhe entregaram um display com um rosto severo e a frase ‘Mais uma realização João Príamo, trabalhando para você’.
Ele mastigou um obrigado e saiu de frente do guichê, dirigindo-se para uma escada à direita – ele detestava elevador e nem reparou se existia algum na prefeitura municipal, mas devia existir, pois o prédio, novo, também era mais uma realização João Príamo… trabalhando para ele, desta vez. 2º andar à direita… seção… seção de… qual era o nome mesmo? E a sala? Ah! Dona Arli, sala 203… Com licença, por favor.
“Dona Arli?” – disse, abrindo uma porta e sorrindo interrogativamente. Uma senhora, com longa cabeleira loura, parou de lixar as unhas e levantou os olhos muito bem delineados de preto. Ele sorriu candidamente e disse, num fôlego só, da mulher de macacão azul que estava serrando sua árvore de estimação dentro de sua… A senhora interrompeu-o e lamentou: “Não é conosco, senhor, nossos homens usam macacão amarelo e nós não temos mulheres neste serviço… é muito perigoso pra elas!” Ele boquiabriu-se , balbuciou um mas… A senhora gesticulou um sinto muito e ele saiu da sala 203.
E desceu as escadas e, no térreo, começou a andar apressado, tomou a rua quase correndo e correu para casa, que não era longe…
E chegou esbaforido e abriu a porta e entrou na sala e não viu a mulher de macacão azul, nem a escada, nem o serrote, nem sua árvore de estimação e nem o vaso onde ficava a árvore, um vaso marajoara grande, bem grande para comportar uma árvore, pintado de branco, preto e marrom.
Quando sua mulher chegou do trabalho, encontrou-o sentado no sofá fitando o vazio de sua árvore de estimação. E ela disse: “Oi, bem! Já lanchou?” E ele: “Não, bem!” E levantou-se e foi pra cozinha fazer café e ferver leite…