O nome é estranho: Luizângela (o pai era Luiz e a mãe Ângela), Lulu quando menina, Angelita quando moça e, agora, mulher madura, dona Zanja. Divorciada duas vezes e viúva do terceiro marido, e sem filhos. Ela mora numa chácara, cercada por parques, sozinha. Mas nem sempre solitária: além do caseiro e de uma empregada que a acompanha há mais de 20 anos, o local, às vezes, recebe amigos e ex-subalternos do marido, que gostam de fins de semana de conversa entre mangueiras, jaqueiras, jenipapeiros e jabuticabeiras antigas, para relembrar os bons tempos sombrios e homenagear o falecido general.
Me apresentaram a ela num ‘happy hour’ que fui após uma reunião semanal da diretoria da associação aqui da região onde moro. Ela estava agitada quando chegamos e ficou mais agitada ainda quando viu gente da associação adentrando o recinto.
– Vocês precisam fazer alguma coisa, pô! Não é possível a gente tolerar tanta sacanagem assim!
– Que foi que aconteceu agora, dona Zanja?
– Tudo! A minha rua ‘tá um caos! É lixo espalhado pela pista, entulho jogado nos containers, mato alto pelas travessas… Isto aqui ‘tá parecendo uma favela!
– Dona Zanja, a senhora sabe que a associação não pode fazer muita coisa… A gente não tem poder de polícia e nem dinheiro pra contratar coleta de lixo particular ou capina de todas as travessas. A gente tenta conscientizar os moradores, reclama com a administração, mas a melhor solução ainda é os própria rua se organizar para evitar estes problemas…
– Na minha rua é impossível! Eu já moro lá há 20 anos, mas depois que o general morreu, os comunistas tomaram conta. Aquele bando de farristas e irresponsáveis que usam as chácaras pra dar festas pros farristas e irresponsáveis dos amigos deles não respeitam nada… E aquela chácara que tem na descida da encosta? ‘tá promovendo festa rave agora! Uma loucua! Qualquer dia, vou convocar os subalternos do general que ainda frequentam minha chácara e dar uma surra nos safados! Se sair tiro, a culpa é de vocês!
Dona Zanja é viúva de um general reformado que tinha fama de mau. Sussurravam histórias cabulosas dele durante os anos sombrios, apesar de nunca ter sido mencionado em qualquer depoimento de torturados que sobreviveram à ditadura. Podiam ser, as histórias, apenas invenções de amigos e subalternos, ou para amedrontar os vizinhos, ou para manter a aura de respeito e hierarquia de um general que já vestira o pijama há muito tempo.
Nunca fui apresentado formalmente a ele, apesar de vê-lo sempre nas assembleias da associação. Após sua morte, dona Zanja incorporou sua postura mas, sem um passado cabuloso para amedrontar e com uma ranzinzisse insuportável, acabou perdendo o respeito e a atenção dos vizinhos, ficando isolada na sua própria rua, logo ela que fora uma das primeiras moradoras do local.
Daí, ela encontrou algumas válvulas de escape para sua frustração: a associação, aonde aparece constantemente para pedir providências de qualquer natureza e os locais frequentados por donos de chácaras mais antigos da região, onde ela pode reclamar da associação, xingar a vizinhança e desancar a democracia, que transformou o país numa bagunça. Como costuma dizer sempre, em suas diatribes: “Que pena que o general morreu!”, os jovens de uma chácara na rua dela, mas um pouco afastada, criaram uma festa anual, que ano passado foi realizada pela 4ª vez: ‘A volta do General’. É um sucesso!
Este ano, dona Zanja desapareceu repentinamente de suas andanças reclamatórias. Sabia-se que ela não morrera, continuava na chácara, apenas não estava mais enchendo o saco de ninguém, e ninguém ia reclamar por isto.
Poucos dias atrás, revi dona Zanja num boteco que fica numa rua paralela à minha, e que é muito frequentado por caseiros e prestadores de serviços da região. Ela não me viu. Estava sentada numa mesinha de canto, as mãos estendidas sobre a mesa, dadas a um rapaz uns 20 anos mais jovem que ela, a quem ela comia com os olhos.
De gozação, brinquei com um amigo, velho morador da rua dela – que, apesar dos contantes xingamentos, era amigo dela há anos – que descobrira porque dona Zanja não aparecia mais na associação para reclamar, xingar, ameaçar vizinhos, caseiros, peões, exigir providências… e contei o que vira. E ele, sem qualquer sinal de ironia: “Não sei se é amor ou sexo… Provavelmente, as duas coisas juntas! Aí a ranzinzice acaba!”