Me lembro de uma festa na casa de um médico amigo de sêo Jefferson, conterrâneo de meu pai, numa chácara próxima de Belo Horizonte. Meu pai não era muito de participar destes convescotes não, mas, talvez para agradar minha mãe, daquela vez ele foi. Era uma senhora casa de campo, com jardins floridos, um extenso gramado onde se espalharam mesas, uma bela piscina redonda, baia com cavalos… Havia umas cinquenta pessoas se confraternizando, meninos e jovens na piscina, garçons servindo bebidas e canapés.
Meus pais se sentaram na mesa em que sêo Jeferson, dona Iracema e outro casal estavam e eu, Ricardo e Amanda (filhos deles) nos juntamos às crianças na piscina. Já havia uns 08 garotos lá, três deles pretinhos, que ficavam, visivelmente, separados dos demais. Na rua onde sêo Jefferson morava, no Barro Preto, onde eu passava muitos fins de semana, havia muitas crianças, brancas, pardas, pretas… e brincávamos todos juntos, sem qualquer discriminação. Naturalmente, fizemos a mesma coisa na chácara. Aos poucos, os demais também se entrosaram, menos uma menina loirinha e outro menino, que ficaram de longe, só olhando nossas brincadeiras.
Numa das vezes que voltei para a mesa, para beber alguma coisa ou pegar algum brinquedo, escutei a senhora do médico dono da casa a se desculpar pela presença dos pretinhos na piscina: – Os meninos são filhos de um conterrâneo do Lóes, amigo de infância dele, que veio passar uns dias na capital, e ele não teve como não convidá-lo. Espero que vocês nos desculpem, pois as crianças não têm muita educação… A senhora do outro casal foi a única a responder: – Não se preocupe, querida, são apenas crianças e estão se divertindo…
Na volta para casa, era visível a irritação de meu pai, tanto que fez algumas barbeiragens na descida da BR-3… (ele já enxergava mal, mas dirigia pior ainda quando estava irritado). E, depois de dar uma fechada num carro que tentava ultrapassá-lo, foi claro com minha mãe: – Por favor, Vera, não insista mais para eu participar destas reuniões esnobes… E não adianta apertar meu braço para eu não responder… se a dona Luíza não respondesse à altura, apesar de educadamente, eu ia mandar a mulher do Lóes à merda!
Meu pai não era comunista ou socialista… Nem era ateu, mas não gostava de igrejas e padres, apesar de terem sido padres dois dos maiores amigos dele, com quem gostava de conversar e discutir, um em Brazópolis, outro em Parnaíba, nos primórdios de sua vida de médico. Mas, dotado de uma curiosidade inesgotável sobre o ser humano, e tendo vivido, como médico, cercado dos mais profundos problemas e das mais graves deficiências humanas, tornou-se um humanista, alguém que respeitava e amava o ser humano apenas pelo fato de ser humano.
É lógico que, sendo um ser humano, ele tinha contradições enormes. E a família conviveu com isto a vida inteira dele. Mas, eu apreendi com seu lado humanista, o sentimento básico de aceitar o ser humano do jeito que ele é, sem discriminação de qualquer natureza, procurando sempre estar mais próximo daqueles que comungavam mais de minhas posições e atitudes, sem criar barreiras para ou criar caso com aqueles que pensavam diferente ou demonstravam aquela mesma mesquinhez ou desapreço da esposa do dr. Lóes. Particularmente, nem sempre consegui… mas nunca deixei de brigar, do meu jeito, escrevendo e transmitindo a todos com quem convivi, todos os direitos que devemos ter e respeitar, exatamente por sermos humanos.
O tempo tem o dom de amenizar não só nossas malquerenças, mas também nossas teimosias, nossas incompreensões, nossos narizes torcidos… Mas também nos dá convicção e coragem de deixar claras nossas posturas diante da vida, não aceitando calados as posturas opostas, o egoísmo, a estupidez ou a baixaria de pessoas com quem conversamos ou nos relacionamos pessoalmente ou através das redes sociais. Mas os novos tempos do mundo e do Brasil me faz esquecer a maturidade, a temperança e o anseio por paz e amor que tanto cantei há 50 anos atrás.
Todo o mundo civilizado está regredindo à época pré II Guerra Mundial… E parte da sociedade brasileira, 57 milhões de eleitores, seguindo esta tendência, conseguiu eleger um Mito chocado nas redes sociais para, junto com filhos milicianos, generais de pijama saudosos da ditadura e ricos pastores neo-pentecostais, governar o país do futuro, uma previsão que já tem uns 500 anos de idade.
Como isto aconteceu? Há centenas de razões e milhares de desculpas… mas a realidade não muda: quase nove meses depois de empossado, o governo Bolsonaro não quer ver luz no dia… pois já nasceu morto! E como fede!
Quando voltaremos a gritar? Quando voltaremos a soprar os ventos da liberdade, da democracia, do amor e da alegria, afastando este fedor pestilento que mata qualquer esperança de vida? (termina amanhã)