Ninguém pôde falar com o ‘monstro’ Jorjão(*)… nem com o filho, um jovem de 20 e poucos anos, que acompanhara a prisão e permanecia na delegacia. Consegui conversar com alguns vizinhos presentes, passei no local do crime e voltei para a redação, fiz a matéria padrão – que, quem, quando, onde, como – acrescentei as expressões de estupefação e incompreensão dos vizinhos – “Meu Deus! Era um casal tão apaixonado!” – as informações do delegado e botei o título óbvio: ‘O Crime do guarda-chuva’.
A notícia saiu, sem destaque, no Estado de Minas, o jornal matutino do grupo – o Diário da Tarde era vespertino – mas sua redação ficou encarregada de cobrir o assunto. Carvalhosa(*), um dos mestres da reportagem daquela época – com mais de 40 anos convivendo e reportando o sub-mundo belorizontino – ficava mais na edição das matérias, mas, vaidoso, gostava de assumir as ocorrências violentas que presumiam grande repercussão…
Coisas da vida, era apaixonado pela mulher e pela vida – eu já o conhecia dos meus tempos de frequentador do Parque Municipal para jogar futebol de salão, nas manhãs de sábado: ele e a mulher, miudinha, cabelo acinzentado aparado na nuca, o oposto do marido, sempre estavam ali, caminhando de mãos dadas pelas alamedas, tomando sorvete juntinhos, passeando de barco pela lagoa… ele e sua Ivone(*), uma professora de grupo escolar muito conhecida na cidade.
– E aí, foquinha… não conseguiu espremer mais nada deste crime não? Não foi nem no local do crime, p…a*? Para quem não é do ‘metier’, foca é o aprendiz de Jornalismo. Ele chamava todos os jovens iniciantes na profissão de ‘foquinha’, mas sem maldade, gozação ou desrespeito, como fazia o Benício. Era o seu jeito de mostrar que a teoria que aprendíamos na faculdade era bem diferente da prática que teríamos que executar na vida real, principalmente como repórteres (ele dizia que não se faz reportagens em teoria, assim como não se ama teoricamente).
– Eu fui, p…a*! Mas ninguém podia entrar… a perícia estava trabalhando lá… como se precisasse! Mas fico feliz por você se interessar em cobrir o caso, apesar dele ser muito banal: o cara pegou a mulher botando-lhe um chifre e matou-a… Mais um, apenas!
– Não é bem assim não, garoto! A morte nunca é banal! Durante o dia, eu estive na delegacia, converseri com o delegado Bigode(*), que me permitiu entrevistar o Jorjão. Depois, fui conversar com a família… é uma história comum pra quem acompanha a miséria da vida humana há tantos e tantos anos como eu, mas a curiosidade do ser humano não arrefece… e curiosidade aumenta a venda do jornal!
– Senta aí e preste muita atenção, pra aprender alguma coisa prática! Vou te contar a história que não vai ser publicada: Jorjão é caminhoneiro. Às vezes, passa 10, 15 dias transportando mercadorias Brasil adentro. Casou com Glória há 25 anos atrás e teve 05 filhos, o mais velho com 24 anos e já casado e com um filho. E Glória teve, pelo menos, uns 04 abortos… Como é caminhoneiro, Jorjão passa muito tempo longe de casa mas, ao contrário do tradicional, não tem uma mulher em cada parada. Sua paixão, sua vida, é Glória… (quando o sexo aperta, há sexo fácil e pago pelas estradas, inclusive de menores, não é mesmo?)
– Jorjão conheceu Glória numa festa em que um primo o convidara para ir. Glória era uma moreninha miúda de cabelo preto escorrido, olhos grandes, peitinhos redondos e bunda arrebitada. Ficou vidrado! Ele não era da turma do Calafate, já acompanhava o pai caminhoneiro em suas viagens, e tinha certeza que seria caminhoneiro. Glória, provavelmente, gostou da novidade: um “bronco fortão que se apaixonou” por ela, deu ‘corda’… e se casaram uns 03 anos depois.
– É óbvio que depois de 25 anos juntos e 09 gravidezes, Glória não era mais uma moreninha miúda de cabelo preto escorrido, peitinhos redondos e bunda arrebitada… só os olhos permaneceram grandes… permaneciam! Mas Jorjão a via assim, a mulher da sua vida, a mãe de seus filhos, a razão de sua existência, que cometeu um erro, fez uma sacanagem, desrespeitou-o, humilhou-o… obtigando-o a lavar sua honra! (termina amanhã)
(*) nomes fictícios