Por elas… e para elas

Eu sou de uma geração em que o menino-homem tinha que ser macho. Qualquer resquício de sensibilidade era confundido com coisa de mulherzinha, já que ser sensível era prerrogativa feminina. Daí para transformar um menino sensível em viado, bicha, boiola, era fácil – homossexual, quando muito, era palavra usada por gente letrada, culta… até mesmo para suavizar o claro preconceito que existia então (e que ainda existe até hoje, claro!).

Do mesmo modo, não existiam lésbicas no meu tempo… havia sapatões, mulheres ‘masculinizadas’, fosse porque trabalhavam fora e não eram ‘do lar’ ou, simplesmente, porque se  recusavam a namorar os amigos próximos, preferindo sair com grupos de amigas, o que era uma humilhação para a turma toda. Uma recusa e lá estava, no dia seguinte, o carimbo: “Bicho, a Priscila é sapatão! Nem tente!”

Eu sempre fui um menino-homem sensível. Já contei isto aqui: meu pai, macho tradicional, queria ter apenas dois filhos e o primeiro nasceu homem. No segundo, minha mãe rezou e fez todos os preparativos para receber uma filha (não existia ultrassom e outras modernidades então) e, surpresa!, nasci eu, com o devido saco roxo.

Não sei se, científica ou biologicamente, o desejo, os anseios e as orações de uma mãe influenciam o feto, mas o fato – eu sei disso hoje – é que eu nasci menino-homem com um percentual alto de sensibilidade feminina, o que tinha que ser renegado porque isto, para a minha geração, não caía bem… sentir pena de alguém, chorar em público, mostrar carinho pelos outros, gostar de poesia – e eu gostava muito! – estas ‘fraquezas’, eram motivos de suspeição da sua masculinidade.

Um dos piores favores que já recebi na vida foi de meu padrinho de crisma. Georges Leonard Silve, um francês que fugiu da Argélia em guerra e foi parar,  junto com o irmão, no sul de Minas, onde se ‘casou’ com uma ex-dona de um hotel da cidade (que, por isso, sempre foi marginalizada pela “boa sociedade” local), uma grande amiga de meu pai desde os seus tempos de médico solteiro da cidade.

Numa viagem a Belo Horizonte, onde morávamos, minha mãe disse a Georges que eu, com 07 aninhos, escrevia poesias… E ele, como bom padrinho e editor do jornal oficial da cidade, quis fazer um agrado aos compadres: levou a poesia, alguma coisa idiota que rimava vaso de flor com amor, e publicou na primeira página d’O Brazópolis.

Uns dez anos depois, quando eu já trabalhava e ia passar os Carnavais na cidade, a mãe de uma menina que eu comecei a ‘ficar’ lá, ao saber de quem eu era filho, perguntou para a filha: “Uai! Ele virou homem? Ele escrevia poesia!” Eu convivi com esta dubiedade boa parte da minha vida… Eu continuo gostando de poesia, mas não virei poeta… e todas as minhas atitudes sensíveis, meu lado emotivo,  foram sendo pisoteadas e ocultas, por mim mesmo, ao longo da vida.

Para compensar, vivi toda a minha vida cercado de almas femininas, minhas mulheres e minhas filhas e, nos primeiros e nos últimos anos, minha mãe. O que me deu inspiração para escrever meu primeiro romance, a ser publicado, se os deuses quiserem, em que os personagens mais fortes, para o bem ou para o mal, são mulheres, nas quais imprimi toda a minha sensibilidade reprimida.

Enfim, recém chegado à velhice e novamente dotado de toda aquela emotividade infanto/juvenil que escondi no fundo da alma, eu posso afirmar, sem medo de cobranças ou gozações, que sou homem, mas um homem sensível… Me entristeço com os rostos vencidos de garotos pedindo comida pelas esquinas, choro ao ver fotos e vídeos de filhas e netos enfrentando a vida no Exterior, algo que eu não tive coragem, me enterneço com a beleza das orquídeas do meu jardim, e estremeço, sem medo, de situações doloridas ou desencontros amorosos em filmes e séries que assisto madrugadas adentro…  assim como me excita o belo corpo de uma mulher… nas telas ou fora delas, mas detesto a ideia de ter este corpo por um ato de força, de violência, de superioridade física ou, mesmo, intelectual.

Não é o ‘normal’ no Brasil, infelizmente. Quem dera minha pátria tivesse mais homens sensíveis! Não haveria tantos feminicídios, não haveria tanta perseguição a transexuais, não haveria tantos imbecis bancando ‘snipers’ nos céus do Rio, nem fazendo arminhas com as mãos…

 

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