As fofocas cessaram, mas meu pai não teve mais condições políticas de permanecer na cidade. E se mudou para Belo Horizonte. Mamãe assumiu definitivamente seu papel de mulher, mãe dos filhos e dona da casa de meu pai. E assim permaneceu por mais 40 anos.
Nos últimos anos dele, tornou-se sua assistente, secretária, administradora financeira, procuradora junto ao Estado, à imobiliária e aos bancos, até que papai, passado dos 80 anos, parou de clinicar, por falta de condições físicas… e desistiu de viver.
Aí, ela se transformou em cuidadora, babá, motorista de cadeira de rodas e ledora: ela o levava para a garagem da casa de meu irmão, onde estavam morando (temporariamente, como ela dizia), colocava-o para tomar sol, sentava-se ao lado dele e ficava lendo e debatendo passagens do livro ou de uma notícia, tentando fazê-lo se interessar pela vida novamente. Mas ele não reagia. Permanecia de cabeça baixa, olhos fechados, respirando pausadamente… Ao seu jeito, ele já fora embora!
Papai morreu em 1995. Desde então, ela incorporou o lado intelectual dele e passou a ler compulsivamente tudo: filosofia, sociologia, história, geografia, psicologia, religião, política e, claro, romances… e contestar e debater tudo. E assim, quase chegou aos 100 anos! Apesar do câncer, poderia ter comemorado o centenário, totalmente lúcida e ativa. Mas escorregou, fraturou o fêmur, não pôde ser operada e teve que ser imobilizada numa cama. Em um mês começou a desistir da vida também. E morreu pouco mais de outro mês depois.
Nestes dois meses acamada, passei várias noites a conversar com ela. Sobre tudo. As aventuras dela, moça de interior, inexperiente, bobona, longe da família e dependente do macho que escolhera para marido, acompanhando-o Brasil adentro; a agressão contra o político, que a levou de novo para longe da família; a vida mais estável, com muitas vizinhas e poucas amigas, em Belo Horizonte, quando sentiu vontade de trabalhar também, mas sem preparo nenhum para tal – ela era normalista apenas; o desejo intenso, por 18 anos, de ter uma filha – papai quis ter só dois filhos – só realizado quando “adotou” minha prima-irmã; o arrependimento por ter-se preocupado tanto com a vida do lar, tornando-se tão meticulosa e exigente com limpeza, com ordem e com o controle das emoções, evitando alguns desentendimentos familiares, que são importantes também para fortalecer as relações entre pais e irmãos; a vontade, nunca realizada, de ter sido uma avó mais avó, fazendo bolos, doces, quitutes para netas e netos – ela detestava cozinhar! – convivendo mais irresponsavelmente com eles e não ficando tão distante e superior, querendo apenas que eles a ouvissem e respeitassem.
”Há tantas coisas que eu podia ter feito e não fiz…!” – queixou-se ela. “E há tantas coisas que você não precisava ter feito e fez, mãe!” “Pode ser… Eu tenho me questionado muito, filho… A vida é isto? Quando eu era menina ainda e briguei com minha mãe porque não queria ir para o colégio das freiras, ela gritou que se eu continuasse desobedecendo a vontade dela e recusando Deus, eu nunca iria para o Céu! Eu não estava recusando Deus, eu só não queria ir para o colégio das freiras!”
”Eu achava que todo mundo que ia para lá, tinha que virar freira! Eu já era muito vaidosa e aquelas roupas pesadas, só com a cara de fora, eram um horror! E depois, Deus era uma coisa muito distante de mim, além de amedrontadora, então! Depois, quando ganhei a batalha, com apoio de meu pai, e fui estudar num colégio normal, em Santa Rita, sem freiras, eu aprendi a respeitar a religião, e seguir as regras da igreja: batizei e crismei vocês, vocês fizeram a primeira comunhão e, enquanto crianças, iam à missa todos os domingos… resmungando, mas iam! Com o tempo, desacreditei de muita coisa…”
”E, agora, no fim da minha vida, eu voltei a me perguntar: se não existe vida após a morte, qual é o sentido desta vida aqui na Terra? Mas continuo não encontrando razão para acreditar naquilo que me ensinaram em criança: um Deus Todo Poderoso, Criador do Céu e da Terra, que está em todo lugar, acompanhando e anotando todas as bondades e maldades que cada um de nós faz… E que determinará para onde vou quando morrer! Eu li tanto nestes últimos anos, aprendi tanto e continuo sendo só a Vera do Sebastião, a dona de casa que sempre fui! Qual foi o sentido disto, meu filho?”
Noutra destas madrugadas, após dormir boa parte do dia e sonhar muito com meu pai, ela segurou minha mão e disse: “Eu não quero mais ser cremada não. Quero ser enterrada junto com Sebastião. Mas, não quero missa de corpo presente também não. Depois de tantos anos duvidando de Deus e desacreditando de uma vida pós-morte, pedir para um padre encomendar minha alma seria hipocrisia. Eu não fiz grandes coisas na vida, mas também não cometi pecados capitais, acho… Se Deus existir, eu só peço uma coisa para ele: esteja onde estiver o Sebastião, me leve para junto dele.”
Se Deus existir, espero que tenha satisfeito seu último desejo. E no domingo, dia das Mães, mesmo triste e só, levantarei um brinde à felicidade dos dois, juntos novamente… (fim)