Sentido da vida (II)

Na década de 20, quando crianças só abriam a boca quando autorizadas pela voz da mãe e calavam-se imediatamente quando o pai levantava as sobrancelhas… e quando só vestiam roupas escolhidas pela mãe ou pelas irmãs mais velhas, minha mãe, a antepenúltima filha de um casal com 21 filhos e filhas, falava pelos cotovelos e só vestia roupas em que ela ficasse “muito bonita”. Minha avó ficava brava, ralhava, botava de castigo… meu avô sorria disfarçadamente (minha Tia Anita, outra centenária, é quem contava isto e as peraltices de minha mãe).

Na década de 30, quando as moças de família não podiam mostrar joelhos e ombros ou usar calças compridas, nem olhar os rapazes na saída da missa dominical das nove, minha mãe e duas amigas criaram uma espécie de saia-calça – a calça acima do joelho e a saia um pouco abaixo – para poderem ter liberdade de jogar vôlei, exatamente com os rapazes que elas eram proibidas de olhar. E jogavam…! Para desespero das beatas, das bem nascidas da sociedade… e da minha avó!

No início da década de 40, quando os pais fazendeiros das moças de família escolhiam, entre os filhos dos fazendeiros amigos, o marido das filhas em idade de casar (aumentar o patrimônio era preciso), minha mãe escolheu o seu futuro marido: o médico da cidade, 10 anos mais velho que ela (que era o filho mais velho de um fazendeiro, mas não tinha a menor intenção de ser fazendeiro algum dia ou gerir as fazendas das duas famílias).

No início da década de 40, quando a tradição mandava que, após o acerto dos pais, um longo tempo de namoro e, pelo menos, um ano de noivado, o casamento se consumasse, minha mãe noivou em 02 meses e casou em 02 semanas…! Pouco depois do noivado, meu pai foi fazer um curso em Belo Horizonte e, concursado, foi contratado pelo Governo Federal como sanitarista. E tinha que se apresentar no Piauí no menor tempo possível.

Voltando, ele conversou com minha mãe: eles tinham que se casar em duas semanas e viajar para o fim do mundo (naquela época, o Piauí não era ali!). Minha avó bateu o pé: “Não vai! O que vão dizer na cidade? Que você se perdeu e precisa casar correndo?” (e disseram mesmo!). E minha mãe avisou: então, vou sem casar mesmo… Mas vou! Casou-se e foi.

O fordinho da família levou-os para o Rio, onde pegaram um Ita pro Norte. Deve ter sido uma bela lua de mel (minha mãe sempre foi muito recatada e não contava detalhes íntimos da sua vida): era tempo de guerra, 1942, e submarinos alemães (ou americanos) atacavam os  navios brasileiros na costa. Aportaram em  Fortaleza, pegaram um jipão carregado de galões de gasolina (não havia postos no caminho)  e foram parar em Parnaíba, uma cidade com ruas de areia, , com comidas, costumes e modo de vida diferentes, e uma miséria chocante, onde ficaram por dois anos. A rebeldia acabou e ela se tornou a Vera do dr. Sebastião…

Aí, meu pai foi transferido para Manaus. A caminho, ele, ela e meu irmão recém-nascido pararam em Belém, e ele teve problemas sérios em um olho, já deficiente. Infecção da brava! No hospital, um médico desenganou meu pai e pediu para minha mãe rezar muito, pois a Medicina não podia fazer mais nada. Ela, ainda religiosa e com fé, apelou para São Judas Tadeu. Meu pai não morreu e viveu até os 85 anos. Agora, um mês depois de acamada, ela pediu para a gente localizar o pedaço de jornal onde estava a oração de São Judas Tadeu a que ela se apegara há 75 anos atrás. Nós achamos em seus guardados! (Numa noite sem sono, ela me confessou que voltara a rezar, mas para ir embora logo, pois estava muito cansada!)

Uns 10 anos depois, Juscelino Kubistcheck, do PSD, partido em que meu avô era prócer político na cidade, foi eleito governador de Minas… e indicou meu pai para  ser diretor/médico do único hospital de lá, mantido pelo Estado. Para alegria de mamãe, ele aceitou. Com dois filhos, eles voltaram para a terra natal, onde pretendiam fixar raízes, em meio às famílias de ambos.

Não ficaram muito tempo, pois surgiu um problema: o prefeito da cidade era da UDN, da oposição a JK. Meu pai era apolítico, mas no jogo pesado da poilítica de Interior sobrou para ele: Zequinha Gomes, o prócer da UDN, com receio de atacar diretamente meu avô (e o prefeito ser discriminado pelo Governo), lançou uma série de fofocas contra meu pai. Como o único jornal da cidade era da Prefeitura, as ‘fake news’ viraram notícias e cochichos insurdecedores, principalmente a última, que insinuava que o médico da cidade estava se aproveitando das mulheres que o procuravam no consultório, o que irritou profundamente dona Vera. A dona de casa explodiu!

Certo domingo, logo após a missa das 09, quando a nata da sociedade se reunia em frente à Igreja, em rodinhas, para comentar os assuntos da semana (meu pai não ia a missas), minha mãe chegou-se à rodinha onde pontificava o líder da UDN, ums senhor de uns 60 anos, de terno escuro, fita de Maria no pescoço, óculos redondos, e tacou-lhe um tapa na cara, enquanto dizia: “Olha aqui, sêo Zequinha… se eu ouvir mais uma mentira sobre meu marido, vou quebrar sua cara!”

                As fofocas cessaram, mas meu pai não teve mais ‘condições políticas’ de permanecer na cidade. Lembrando disto noutra noite sem sono, minha mãe me questionou se ela agira corretamente. Eu disse que sim e ela retrucou: “Mas nós voltamos a ficar sozinhos, longe da família, do apoio, da segurança… Sebastião teve que enfrentar tudo de novo! Saímos duma boa casa de dois andares, com terreiro e árvores, da infância despreocupada que vocês tinham, para morar no quarto de um hotelzinho de uma cidade grande! Por causa de umas mentiras bestas e um político safado?” (termina amanhã)

 

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