Cartas (II)

Você entende isto. Sabe que não existe amor unilateral, por mais tempo que você conviva com alguém. O doutor chamega Zú, que eu me lembre, desde que ela foi para o clube, mas não parecia saber ou se interessar pela vida dela fora das visitas dele lá… Não era bem assim, segundo Zú me disse numa viagem que os dois fizeram  para a Bahia, logo depois que o clube fechou. Ela já estava ‘hospedada’ na casa dele e descobriu que ele tinha fotos dela em passeios com outras meninas, tinha informações sobre a família dela no interior de Minas… Meio louco, não acha?

Você sabe, também, que eu gosto muito de Zú. Invejo sua liberdade, algo que nunca consegui alcançar, mesmo tendo a vida libertina que sempre tive depois que fugi de meu marido, na Bahia. Também gosto muito de nosso amigo doutor e, por vivência, sei que a situação que ele criou para a Zú não dará certo, acabará mal, para ele ou para ela. Quem sabe uma boa conversa sua consiga soltar o passarinho da gaiola? Tente, por favor. Se eu voltar para a Bahia, te escrevo novamente, mas acho que vou tentar me acostumar por aqui. Beijinhos.”

Eu sempre detestei me intrometer na vida dos outros… faz parte da minha natural introspecção. Até mesmo de mulheres e filhas… Acho que estou invadindo a privacidade da pessoa. Mas, o pedido era irrecusável. Eu já havia notado que meu amigo doutor estava estranho há algum tempo. Quase não participava mais de algumas reuniões nas quais seu humor cáustico e suas observações precisas eram motivo de discussões acaloradas. Agora, quando aparecia, sempre sozinho como eu, falava pouco e ficava o tempo todo olhando o celular ou conferindo a hora no relógio… E sempre saia cedo, depois de uma, no máximo duas taças de vinho.

Liguei para ele e disse que estava precisando de uns conselhos médicos… se ele podia dar uma passada em casa no final do dia. Ele resmungou, mas concordou.  Antes das 06 chegou. Eu o esperava com uma garrafa de tinto Grattamacco, que eu havia ganho de uma amiga que andara pela Itália (eu não gosto de vinho!) e coloquei minha dose de uísque tradicional.

Ele me olhou de esguelha, desconfiado: “Qualé, cara… este vinho é caro pra cacete! Se ‘tá’ abrindo só p’ra mim, é coisa séria… ‘Tá’ com câncer? Alguém ‘tá morrendo? Eu peguei o envelope perfumado e dei para ele ler. Pensei que fosse explodir, me xingar, jogar o vinho caro na minha cara… Mas, não. Ele afundou um pouco na cadeira da varanda e murmurou, apenas: “eu amo aquela putana!”

— Continue amando, então, mas deixe-a viver a vida dela. Continue transando com ela, mas no lugar que ela estiver fazendo a vida! Algum tempo atrás, eu me encontrei com ela no Empório, livre, leve e solta… e alegre, feliz, intensamente feliz! Ela gosta desta vida, meu amigo, uma vida que ela não pediu, mas na qual ela se tornou livre, sem amarras de qualquer espécie.

— É… Eu li o texto no seu blog. E fiquei com ciúmes de você. Na verdade, foi ali que eu descobri que a amava e queria tê-la só para mim.

— Pode ser que daqui a alguns anos, quando a beleza, a alegria de viver  e o fogo começarem a murchar e apagar, ela perceba que seria melhor ter ficado com você… Aí, nem eu nem você estaremos mais aqui. Então, não tente murcha-la e apaga-la agora, prendendo-a na sua gaiola.

— Você tem razão… Dèzinha tem razão! Vou resolver isto hoje mesmo!

Uma semana depois, estava sentado na varanda tomando meu uísque e  apreciando a lua cheia que crescia por trás de uns abacateiros da minha vizinha, quando a buzina tocou no portão. Abri e meu amigo doutor se aproximou sorrindo e trazendo uma garrafa preta de Royal Salute 21 anos (ele não gostava de uísque, mas tinha uma boa adega na casa dele).

–Vim comemorar, cara!

— Que houve? Pediu Zú em casamento e ela aceitou?

— Claro que não! Eu tenho um apart-hotel no centro, que eu usava quando me separei. Botei Zú p’ra morar lá e avisei uma velha agenciadora de garotas que conheço dos tempos de Câmara, que tinha uma garota de primeira à disposição de velhos babões e pouco produtivos numa cama. Em 03 dias, Zú está com a agenda cheia, menos às sextas, que estarão sempre reservadas para mim. E voltou a ser a Zú que nós conhecemos no clube… Vamos comemorar?

Ficamos lá vendo a lua subir para o céu, diminuindo cada vez mais, derrubando um uísque que merecia ser bebericado com solene reverência, eu ouvindo-o falar um monte de abobrinhas, fingindo um contentamento que, visivelmente, era falso. A gente caminha por toda vida perseguindo sonhos, numa constante busca da felicidade… Nesta caminhada, sonhos construídos desmoronam, mas a gente busca de novo e, ao final, a gente descobre que há sonhos impossíveis.

A felicidade está em aproveitar os sonhos conquistados enquanto eles se realizam e nunca desistir dos sonhos impossíveis. Meu amigo desistira muito fácil de seu último sonho e estava conformado com a perda. E morreria infeliz. Diferente de mim, que não gosto mas convivo bem com ela, a solidão não será uma boa companheira para ele…!

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