O chefe do meu setor era um contador brincalhão, que entrara ainda estudante como eu, em um banco de Pouso Alegre, no sul de Minas e, por isto, conhecia meu avô – não pessoalmente, mas como cliente preferencial da agência onde ele trabalhara até ser promovido e ir parar em Belo Horizonte.
Por isto, ele me gozava muito: “E aí, bicho, quando é que você vai passar pro lado de lá do balcão? Seus dedos são para assinar, não para datilografar…!” Foi ele também que me disse que a agência em que trabalhávamos era uma tranquilidade em termos de operações agropecuárias, apesar de eu passar os 05 dias da semana datilografando as CPR’s (parece que hoje chama CRP e é o próprio produtor, tomador do empréstimo, que a preenche).
No fundo, vindo de família de pequenos agricultores do sul de Minas, sempre dependentes de financiamentos bancários para tocar a plantação, ele tinha certa raiva dos grandes produtores rurais que também dependiam destes financiamentos, mas nunca se preocupavam (nem trasantontem nem hoje) com a possibilidade da safra não vingar ou com o banco tirar suas terras por falta de pagamento do dinheiro emprestado. Para eles, o governo sempre foi mãe…
E gostava de me mandar fazer alguma coisa nas proximidades da sala do gerente da agência quando por lá aparecia algum grande produtor: “Presta atenção na conversa, garoto… Vai aprendendo!”
Foi um aprendizado, realmente. Depois de tanto conhecimento teórico adquirido nos livros de meu pai, ouvir, alto e bom som, como opera o poder real, é uma lição inesquecível. Me lembro especialmente de um grande produtor de milho de Felixlândia que adentrou a agência vestido a caráter, apesar de estarmos num centro urbano: chapéu de couro com as abas levantadas, blusão de couro sobre a camisa branca e gravata marrom e bota de cano alto (só faltou a espora). E fumando um charuto!
Falando alto para todos em volta ouvirem, desfiou a quantidade de terras que possuía, as toneladas de milho que havia colhido nos anos anteriores, o número de posseiros que empregava em suas terras e a modernidade das colhedeiras que possuía. Falou de muitas outras grandezas e, de repente, apagou o charuto que estava incomodando o gerente visivelmente e, baixando a voz, começou a conversar olhando diretamente para ele. Como eu estava próximo, pude ouvir algumas frases soltas: “… as chuvas fora de hora… o preço baixo do milho… os estoques do governo… situação político-econômica do país (Costa e Silva, ditador de plantão, tinha acabado de morrer de trombose cerebral)…
O final da conversa fiquei sabendo depois, quando datilografei a CPR: ele precisava de um novo empréstimo para quitar um refinanciamento que já tinha feito na agência onde costumava fazer estas operações. Empréstimo este que, claro, foi concedido… Afinal, por mais penhorado que estivesse em outros bancos, era um cidadão do bem, produtor rural de conceito ilibado, fraternal amigo do então governador Israel Pinheiro. Meu avô também tinha todas estas qualidades…!
É verdade que o Brasil mudou muito desde os meu vinte e poucos anos, apesar de não ter muitos planos para tanto naquela época (a ditadura ainda durou 15 anos). Conseguiu derrubar uma ditadura, escreveu uma Constituição Cidadã, elegeu como presidentes um intelectual, um operário e até uma ex guerrilheira urbana… E começa a ser governado por uma família despreparada e cercada de generais da reserva por todos os lados.
Mais do que isto: deixou de ser um país rural para se tornar urbano, a 8ª economia do planeta, com um PIB de 3,2 trilhões de dólares… Apesar de, infelizmente, continuar com uma sina histórica: é o 10° país mais desigual do mundo, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, e, entre 22 países desenvolvidos e emergentes analisados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)., lidera a concentração de riqueza nas mãos do 1% mais rico da população: no Brasil, este 1% mais rico fica com 27% da renda nacional!
Ou seja: os donos do agronegócio, como na Colônia, no Vice-Reinado, no Reinado, na 1ª República, na 2ª República, na Ditadura, na Democracia e, na provável Ditadura Constitucional de hoje, continuam mandando e distribuindo, entre eles, a riqueza nacional, mesmo que, agora, o façam dividindo com o poder financeiro. Meu avô se daria bem nestes novos tempos, que são quase os mesmos tempos dele…! (continua)