Com a eleição dos Bolsonaros, a religião voltou ao poder no Brasil. Nossa ministra dos Direitos Humanos, da Família e das Mulheres, pastora evangélica e advogada Damares Alves, ex-assessora do também pastor e quase ex-senador Magno Malta, “o vice ideal do presidente eleito” (que não virou vice e declarou publicamente que não a indicou), disse alto e bom som que “Chegou a nossa hora, é o momento de a Igreja ocupar a nação. É o momento de a igreja dizer à nação a que viemos. É o momento de a igreja governar”
Por mais que dona Damares seja uma cortina de fumaça para as grandes jogadas econômico-financeiras que já estão sendo operadas às sombras, é incontestável que parte do povo brasileiro está se tornando mais dependente de comandos e posturas religiosas. Apesar de ter uma tradição católica apostólica romana, o brasileiro em geral, independentemente de cor, classe social ou gênero, sempre colocou as obrigações religiosas em uma prateleira separada da batalha diária pela vida. Ou seja: brigar pelo pão nosso de cada dia não tem muito a ver com as pregações de Cristo ou os mandamentos de Deus (a não ser para os inevitáveis Deus é pai! Também sou filho de Deus! Graças a Deus!).
Creio que todo mundo conhece pessoas que vão à missa todo domingo, confessam e comungam, participam de quermesses para ajudar os pobres, fazem o sinal da cruz quando passam por uma igreja, rezam o terço em determinadas épocas… e, na vida prática, fazem questão de não se lembrar do Decálogo, os 10 Mandamentos de Deus, como o 6°, “Guardar castidade nas palavras e nas obras” ou o 9°, “Guardar castidade nos pensamentos e desejos” ou o 10°, “Não cobiçar as coisas alheias”, que os padres da minha juventude traduziam apenas como “Não cobiçar a mulher do próximo”…
Normalmente, as pessoas relevam esta hipocrisia: “A carne é fraca, o diabo é tentador, um pecadinho aqui, uma traiçãozinha ali apimenta a vida…, e Deus perdoa os pecadores!” Conheço muita gente que cometeu pecados capitais a vida inteira e, chegando à minha idade, quando os pecados não podem ser mais cometidos, se converteram em ratos de igreja, confessando e comungando uma vez por semana, nas missas dominicais, e pregando a palavra de Deus em todas as oportunidades. Provavelmente, arrependidos, tentam garantir um lugar ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo no Céu…
Não sei se evangélicos também fazem isto. As igrejas de dona Damares pregam outras coisas além da devoção absoluta a Deus: ao contrário do Vaticano, que abjurou o poder terreno após séculos de disputa que redundaram, por exemplo, numa Inquisição, elas anseiam pelo poder político e ensinam que não é necessário morrer para gozar as delícias de mel e néctar dos Céus… Elas podem ser gozadas na Terra mesmo, bastando você ter fé e contribuir religiosamente para o pastor ou pastora de sua igreja…
Me impressiona o fato de que um pastor famoso como Silas Malafaia, o terceiro pastor mais rico do Brasil, segundo a revista Forbes em 2013, pastor presidente da Assembléia de Deus Vitória em Cristo, com milhares de seguidores pelo Brasil (na última Marcha para Jesus, organizada pela igreja no Rio de Janeiro, havia mais de 600 mil pessoas presentes), seja capaz de, publicamente, pregar que Deus é corrupto, que ele vende suas benesses, como a esperança de uma casa própria, em troca de um aluguel ou uma prestação da casa própria ou um percentual dos biscates feitos por desempregados… E que milhares de pessoas aceitam passivamente esta acusação a Deus!
Infelizmente, é este tipo de religiosidade que está tomando conta dos brasileiros: de acordo com as últimas estatísticas do IBGE, entre agosto de 1994 e dezembro de 2016, o número de católicos do país decresceu de 75 para 50%, enquanto o número de evangélicos crescia de 14 para 29% da população (ateus e outras também cresceram, de 5 para 14% e de 6 para 7%). E a previsão é que até 2040, os evangélicos ultrapassarão os católicos, o que significa, em 20 anos, o perigo do espiritual totalitário sobrepujar o livre arbítrio individual (a Igreja de Roma ainda preza o livre arbítrio!)
Quem se interessa um pouco por História, sabe que a humanidade vive em ciclos como os espirais de uma mola: avança e volta, volta e avança. Sociedades e crenças nasceram, cresceram e morreram… ou se dividiram em outras sociedades e crenças. No mundo de hoje, em que há Estados Unidos, China, União Europeia e Rússia e o resto e, também, há catolicismo, islamismo, judaísmo, budismo, xintoísmo e suas inúmeras vertentes, além do politeísmo afro-asiático, o básico é a fé do ser humano. Que acredita em Trumps e Putins e paga seus dízimos a Edir Macedo ou ao Arcebispo Metropolitano.
Eu não tenho fé, infelizmente (seria muito reconfortante culpar Deus pelos meus fracassos!), e, por isto, do mesmo jeito que desconfiava dos padres de batina preta que me incentivavam a contar os ‘pecados’ cometidos antes de receber a hóstia consagrada na comunhão, eu desconfio dos pastores ou pastoras que vêm Jesus Cristo numa goiabeira ou constroem, usando os parcos recursos recolhidos de seus crédulos crentes, um templo monumental em São Paulo, com o único propósito de mostrar que são mais poderosos que a Igreja tradicional (a Igreja católica passou séculos fazendo isto: construindo obras terrenas imensamente ricas, arquitetônica e materialmente falando, para provar seu poder sobre a humanidade).
Ao mesmo tempo, eu acho que na religião, qualquer religião, a crença em alguma coisa é importante para a convivência em sociedade. Todas as religiões têm regras que tornam a convivência social menos agressiva, que tornam a convivência humana menos irracional – aquela coisa tão objetiva em filmes e séries americanos: eu quero isto e mato para obter o que eu quero!
Às vezes, fico imaginando como seria a humanidade se não houvesse freios religiosos… O ser humano mataria para dominar um território? O ser humano mataria para ser o dono de uma empresa? O ser humano mataria para comer? Para ter prazer? Para mandar? Muitos fazem isto, mas a imensa maioria não, exatamente porque tem freios, geralmente religiosos.
Apesar de toda a evolução – que dona Damares considera perigosa – o ser humano continua carregando uma natureza mais irracional do que qualquer animal criado por um Deus ou originário de uma ameba saída das águas (os animais matam para comer e sobreviver, o ser humano mata por um ‘tapa’ de maconha ou por uma fechada no trânsito!).
E o brasileiro, que acha que Deus é seu conterrâneo, vai ter que apelar muito para ele, ou Ele, nos próximos tempos: um governo de crentes, uma ditadura constitucional ou uma revolução popular? Um agnóstico e pacifista como eu ainda tem uma saída: o Uruguai é logo ali! Quem sabe um ‘tapa’ me faz ver Deus? Se não, certamente vai me fazer dançar candonbe pelas ruas…