O círculo da vida (II/III)

Meu pai estava sempre muito distante, em seu próprio mundo, minha mãe tinha a vida doméstica para cuidar, não tinha tempo para debater leituras, meu irmão mais velho gostava de machezas, azarar garotas, dirigir carros, aprender a voar. E os amigos não liam! Jogavam bola, davam em cima das meninas, curtiam filmes de bang-bang…! Eu participava destes jogos também (se não seria tachado de metido ou bicha) e não desgostava, mas preferia, sempre, lutar como Athos e seus mosqueteiros ou explorar o mundo num balão como Phileas Fogg ou derrubar as negrinhas na praia como o Professor.

Meu irmão mais velho era rebelde demais e detestava estudar para ser enquadrado num padrão tradicional à época: ser o seguidor do pai, um médico… Eu era mais flexível, não brigava, não discutia, parecia não ter opinião própria! Meu pai tentou me forjar uma personalidade, me encaminhando  ao Colégio Militar, mas eu refuguei, não passei no ‘exame de admissão” ao colégio, de propósito… a vida militar me parecia absurda!

Meu pai, achava eu, deveria saber disto… afinal de contas, eu gastava boa parte do meu tempo lendo os montes de livros que ele tinha em sua biblioteca e a maioria deles falava em liberdade, em escolha, em solidariedade, em resistência democrática ás práticas autoritárias e na não aceitação passiva das convenções socialmente estabelecidas.

De qualquer modo, fiz o curso Científico e não o Clássico (naquela época havia uma divisão já no colégio: quem queria seguir Medicina, Engenharia, Economia e similares e quem queria seguir Direito, Letras, Psicologia e semelhantes). Terminando o 3º ano, tentei a Faculdade de Medicina, não passei e fui fazer um cursinho preparatório para o ano seguinte. No meio do ano desisti: Medicina não era, definitivamente, a minha praia. Eu gostava de ler e escrever e o mais perto disto que eu poderia fazer era o Curso de Jornalismo. Fiz, passei,  cursei e me diplomei..

O curso universitário me libertou mais um pouco da timidez… que já vinha sendo vencida pelo primeiro emprego com carteira assinada, mas não da solidão. Eu tinha tomado bomba no 3º ano de ginásio e meu pai era implacável: “Você tem casa, comida, roupa lavada e uma mesada para estudar… Não estudou, continua tendo casa, comida e roupa lavada, mas vá trabalhar para sustentar seus prazeres!” Meu irmão começou a trabalhar aos 14 anos, como office-boy de uma empresa estatal… e eu comecei, oficialmente, com carteira assinada, aos 17 anos, depois de passar num concurso, na mesma estatal.

A vida universitária me abriu muitas janelas. Eu era bom ou muito bom em determinadas matérias do Curso e, calcado ainda na timidez, me dava bem com todo mundo, sem pertencer a um ou outro grupinho do Curso ou da Faculdade, o que reforçava a solidão pessoal. Ainda por cima (aleluia!) comecei a namorar uma estudante do 2º ano, nossa veterana, o que me tornou, como já acontecera na minha turma de rua, uma espécie de irmão mais velho, conselheiro ou, mais precisamente, aquele ouvido mais confiável para os segredos e problemas de alguns colegas.

Paralelamente, o interesse pela vida política, que começara ainda no colégio, abriu caminhos inesperados para um tímido, numa época de intensa agitação, com a juventude universitária se rebelando contra os militares que tomaram o poder em 1964. Meu conhecimento teórico (adquirido nas tantas leituras solitárias na biblioteca de casa) aliado à minha ojeriza absoluta à violência, me deram um status do ‘cara ponderado que devia ser consultado’ nos ardorosos debates que envolviam os grupos políticos em que se dividiam os alunos da Faculdade.

Com isso, mesmo detestando ‘aparecer’, como se dizia naquela época, fui eleito vice presidente do Diretório Acadêmico da FAFICH, numa eleição que tinha como principal objetivo a reabertura do Diretório, que havia sido fechado pela ditadura. Antes de conseguirmos, o presidente desapareceu (foi lutar na guerrilha do Araguaia), e eu assumi a presidência do DA. Nunca imaginei que um cargo de projeção dentro de uma comunidade pudesse ser tão solitário!

Antes de terminar o Curso de Jornalismo, me casei com Marília, a veterana do 2° ano, então já formada e trabalhando (não foi golpe! eu também já trabalhava!). O casamento, a primeira filha, o trabalho de criação numa editora/gráfica, a mudança para Brasília, a segunda filha, as constantes viagens pelo Brasil, conhecendo e convivendo com gente de todos os níveis sociais não mudaram minha natureza solitária: eu tinha colegas de trabalho, eu tinha conhecidos – jornalistas, políticos, gerentes ou donos de empresas – que conviviam comigo enquanto exerciam sua atividade, mas nunca partilhavam da minha intimidade. (continua)

 

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