Para onde vamos…

Minha terra tem ladeiras,///mas não tem mais sabiás…///

todas fugiram assustadas///com o prefeito que’tá lá!

O povo ‘tav’insatisfeito///Com os políticos de lá…

Arranjou, então, um jeito///De manda-los passear!

Assim Egídio foi eleito///e começou logo a mudar:

de cara, arrancou as palmeiras///e afugentou as sabiás!

No lugar das velhas palmeiras,///Stands de tiros mandou botar…

Queria de toda maneira///que o povo aprendesse a matar!

O povo começou a xingar,///mas Egídio não ligou…

Arrumou logo um delegado///pra prender e arrebentar!

Martineto, autor desta Canção do Egídio, é o poeta de uma pequena cidade do Interior. Filho de família tradicional, dona de imensos cafezais, fugiu dos padrões e foi ser professor de Geografia e História do colégio, além de colaborador constante do único jornal da cidade, mantido pela Prefeitura, durante muitos anos, até que, muito crítico e gozador, foi proibido, na gestão anterior, de publicar no jornal, mesmo na coluna literária. Daí, fundou, editou, redigiu, reportou e agenciou publicidade do primeiro jornal de oposição – que durou 06 meses… o jornal, não o prefeito! Comerciantes, pequenos empresários e produtores não estavam dispostos a entrar em choque com a Prefeitura…

Agora, apesar de não apoiar o candidato derrotado, ele continuou barrado no jornal oficial pelo Egídio, o novo prefeito, o que era esperado, pois, durante a campanha, fez oposição a ele também… Martineto, apesar de não ser formado em Jornalismo e sim em Letras, segue à risca o que dizia Millôr Fernandes:  “Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”

                O problema de Martineto é que as coisas agora são mais complicadas que em governos anteriores. Egídio Macias Manzillo, o atual prefeito, tem uma noção de autoridade que extrapola a democracia em que o país viveu desde a aprovação da Constituição Cidadã… Um presidente que elogia a ditadura militar, que apoia a tortura, que acha que bandido bom é bandido morto, que concorda que mulher é inferior ao homem foi eleito pela maioria da população brasileira, e aquilo que ele pretende implantar no país é, exatamente, o que Egídio vinha aplicando em sua cidade há dois anos… SUA cidade!    

Egídio é filho de uma tradicional família da região, que migrou da Itália na época da guerra e se tornou dona de terras, cafezais e da política local. Estudou na Mackenzie, fez mestrado na USP e voltou para a pequena cidade do sul de Minas Gerais porque o poder da família estava sendo “ameaçado” por políticos ‘comunistas’, que pregavam a igualdade de classes e o direito de ‘gentinha’ se candidatar a prefeito e mandar na cidade…

Os eternos donos das terras e da política estavam indignados! Em duas eleições, o representante deste povinho,  “que desconhece o seu lugar” foi eleito prefeito… Fez um ‘monte de besteiras’ durante 08 anos, criando bolsas de estudo nos cursos técnicos da cidade para os alunos das escolas rurais, instalando postinho de saúde em dois distritos, além de conseguir trazer médico cubano (Imagina… um comunista!) do Programa Mais Médicos para o hospital da cidade, implantou uma Farmácia Popular junto ao hospital, além de criar um programa municipal de obras que empregou parte desse pessoal na cidade, afastando-o das fazendas… dando espaço para esta gentinha empinar o nariz e querer assistir missa dominical na mesma hora das famílias gradas da cidade… Inadmissível!               

P’ra cúmulo do desrespeito às famílias de bem, na eleição seguinte, quando o prefeito Zé Mário, bem prestigiado, não podia mais ser reeleito, seu partido indicou um operário da máquina de café da Família Manzilo para concorrer… Um absurdo total! As eternas diferenças entre os poderosos da terra foram esquecidas e um acordo indicou um antigo prefeito, Paulo Brás de Lima, da família fundadora da cidade, como adversário… que  ganhou. Estava tão velho e tão comprometido com as velhas práticas políticas que, em menos de um ano, Zé Mário se tornou ‘pule de 10’ para levar as próximas eleições, daí a 03 anos.

Foi quando Egídio Macias foi convocado a voltar para a cidade natal. Jovem, bonito, bem conectado com as técnicas modernas de comunicação, como Facebook, Instagran e Whats’App, incentivou o prefeito Paulo Brás a estender a rede por toda a área rural e, tão logo ela foi estendida, começou a sua pregação através das ‘fake news’… Martineto chegou a escrever um hai kai sobre isto, que era assim:

Velho Brás não faz nada…///É idiota contumaz!///Egídio manda no velho Brás?

Egídio manda é na cidade,///Que elegeu o velho Brás…///Que obedece e nada faz!

Mas Marineto era uma voz pregando no deserto. Os jovens da cidade eram ‘escravos da Internet’, e os da zona rural, entusiasmados com a liberdade que as redes sociais lhes deram, acreditavam nas ‘fake news’, e ensinavam seus pais, fiéis seguidores das igrejas evangélicas que se instalaram na região – só no distrito de Vera Cruz havia 03 – ‘Jesus é o Senhor’, ‘O Céu será alcançado’ e ‘Divino Mestre que nos guia’ – que a oposição era inimiga de Jesus, queria destruir a família e só sabia roubar. O juiz da comarca era um Brás e conseguiu inviabilizar a candidatura de Zé Mário… Ou seja, a roda girou e na eleição seguinte, Egídio assumiu a Prefeitura de fato…

Seguindo o conselho de um livro, O Príncipe, de Machiavel, cuja obra fora obrigado a ler na faculdade, botou todas as suas ideias autoritárias em execução logo no primeiro ano de governo… O que, ao contrário do que esperava, não deu muito certo! Segundo ele, exatamente por causa de Martineto, que, em suas aulas e com seus poemas e hai kais espalhados por seus alunos nas redes sociais, transformavam seus atos e ações políticas em motivos de gozação na cidade.      

Quando a ‘Canção do Egídio’ começou a se espalhar pela cidade, o prefeito perdeu as estribeiras e mandou seu delegado tomar providências enérgicas. Delegado Romão era um cumpridor de ordens, mas tinha uma boa experiência profissional. Primeiro, investigou a vida pessoal de Martineto que, com mais de 40 anos, não era casado… Devia ter alguma coisa! Não tinha. Ele não era homossexual… não era pedófilo… nem tinha qualquer relação estranha com alunas e alunos do ginásio. “Enrolava” uma noiva há alguns anos, mas isto não era crime. Os alunos, aliás, o adoravam, pois o consideravam um deles…

Romão, então, passou a escarafunchar a família de Martineto. E descobriu coisas, muitas coisas! Descobriu que ela sonegava impostos, descobriu que ela burlava o INSS, descobriu que uma das irmãs de Martineto chifrava o marido com o prefeito da cidade vizinha, descobriu que o chefe do clã, um tio de Martineto, tinha botado casa para a amante, com quem tinha dois filhos…

Fez um dossiê de todos os ‘podres’, com fotografias, gravação de denúncias e até um filme da traidora se encontrando com o prefeito no motel ‘Maçã do Amor’, e levou para o prefeito Egídio. Em vez de dar pulos de alegria, Egídio Manzillo ficou possesso: “Tu é maluco, Romão? Não tem uma família de bem por aqui que não tem todos estes podres e mais alguns nos seus armários… Se você divulgar isto, você e eu caímos no dia seguinte! Queima isso aí agora… aqui na minha frente! Tem alguma cópia? Tem que queimar também!”           

O delegado ficou perplexo, queimou os originais na frente do prefeito e prometeu fazer o mesmo com a cópia, mas não o fez. Guardou com ele, como garantia, e resolveu investigar outras famílias gradas da cidade, inclusive a de Egídio. Entrar na política era algo que ele sempre tivera vontade… Ali estava a sua janela! Particularmente, criou sua própria operação: ‘Cava Mato’.

Pouco tempo depois, o presidente foi derrubado e a ditadura se instalou no país. Martineto foi demitido do colégio e desapareceu da cidade. Dizem que se refugiou numa das fazendas da família em outra cidade, onde não foi incomodado, nem pelo prefeito Egídio, que não foi cassado, mas ficou dependente das forças de segurança do Estado que, na cidade, eram representadas pelo delegado Romão, nem por este, que não tinha jurisdição sobre outras cidades. Mas todo mundo sabe que ele está vivo porque, de vez em quando, algum poema dele é distribuído pela cidade. O último foi esta Canção do Repúdio:

Minha terra tem saudade///das palmeiras e sabiás…

Mais ainda da liberdade///Que também lá não há!

As aves que lá gorjeiam,///só o fazem num porão…

Geralmente sob tortura///do delegado Romão!       

O prefeito não faz nada,///Também ia ser dependurado…

E a cidade ‘tá sempre calada,///com pavor do delegado.

Não permita Deus que eu morra///nesta terra de gente má!

Que consegue viver sem honra///Sem liberdade… e sem sabiá!

 

 

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