Recordações da minha pátria morta (II/III)

Sob a égide ‘Deus, Pátria e Segurança”, o vice general tornou-se presidente constitucional do Brasil e retomou, de imediato, as premissas básicas de 1964: contestar a “democrática postura dos militares em assumir o governo do país diante do caos previsto por um presidente inepto era subversão… contestar as medidas salvadoras impostas pelo governo militar era subversão… contestar as ordens emanadas do Alto Comando das Forças Armadas era subversão… publicar denúncias contra órgãos do governo, insinuando que havia corrupção no governo militar, era subversão! E subversão se punia com prisão, passível de tortura caso o subversivo se mostrasse arredio à doutrina ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’ e morte, por fuzilamento, como previa a nova lei de Segurança Nacional.

Quando eu era jovem, rebeldia política era ser contra um sistema que privilegiava ricos e abonados contra a maior parte da população, de pobres e miseráveis… quando eu era jovem, rebeldia política era contestar os privilégios… tipo: políticos que tinham aposentadoria especial, sem pagar por ela, juízes que tinham garantia de estabilidade econômica até se fossem presos por algum crime, empresários que jogavam seus débitos à conta de suas empresas, que recebiam benefícios fiscais do governo. Pela nova ordem, rebeldia era isto e tudo e qualquer coisa que eles não gostassem…!

A verdade em 2018 é que boa parte da população, mesmo aquela que foi beneficiada por políticas públicas de distribuição de renda, cansou dos velhos conchavos feitos por cima, e queria participar mais, queria dar palpite, não apenas de tempos em tempos, através das eleições. Nosso sistema político estava falido, nosso tecido social estava despedaçado. Mesmo assim, quem sempre mandou, não queria largar o osso! E a maioria que sempre atuou como boiada, ainda tinha pouca consciência política e estava muito afoita para resolver as coisas de qualquer jeito, e rapidamente… mesmo que fosse botando, de novo, um ‘salvador da pátria’ para conduzir o processo. Em ambos os casos, que a  democracia fosse para a p…* que a pariu!

Outro fato concreto: o Coiso, um despreparado na mais completa acepção da palavra, político de uma mensagem só, passou quase 30 anos como deputado federal pregando a violência, a homofobia, o racismo, o anti feminismo e, de repente, a gente descobriu que o Brasil profundo era exatamente igual ao que ele pregava: violento, homofóbico, racista, antifeminista, inclusive aquelas pacíficas donas de casa fanáticas por telenovelas, muitos homo, transexuais , mulatos e negros e os maridões das pacíficas donas de casa, também fanáticos por telenovelas…

Daqui de longe, acompanhando o que se passa no Brasil hoje, me entristeço ao saber que os brasileiros, especialmente os jovens, agora limitados em sua liberdade de se expressar via redes sociais – falou ‘bobagem’, é levado para prestar esclarecimentos numa delegacia! E, às vezes, não sai mais! – se arrependeram do voto que deram, mas não conseguem fazer nada para mudar a situação atual: é muito difícil demonstrar raiva até mesmo dentro de casa, quando você não sabe se o vizinho do apartamento em frente é um apoiador do regime e está vigiando você pela janela. É angustiante você fazer algum comentário na mesa do jantar, sabendo que seu filho, estudante de uma escola militar, pode achar que você está traindo a Pátria-Mãe…!

Eu consegui escapar disto tudo. Não deu tempo para salvar o dinheiro de minha mãe, aplicado numa poupança… Nem salvar minha mãe! A primeira medida econômica do governo do Coiso foi congelar a poupança de todos os brasileiros. Minha mãe já tinha passado por isto no governo Collor e não resistiu a mais uma porrada!

A lembrança do rosto de minha mãe se crispando ao assistir o Ministro da Economia, um economista do MIT americano, investigado por golpes financeiros contra fundos de pensão, anunciando na televisão que, em nome da Pátria Mãe e do futuro da Nação, o governo decidira congelar a poupança de todos os brasileiros para realizar um ajuste fiscal inadiável, evitando uma inflação galopante que prejudicaria imediatamente os mais pobres e desvalidos e aumentaria a fuga de capitais do país, não me saiu da cabeça até hoje.

Na verdade, foi um gesto tresloucado do Coiso. Sem qualquer preparo pessoal e cercado de um bando de apoiadores com sangue nos olhos para fazer uma espécie de ‘limpeza’ das ideias comunizantes  que ‘infestavam’ as instituições, os serviços públicos e as organizações sociais do país, ele, praticamente, repetiu as primeiras medidas do governo Collor, que já tinham demonstrado serem um desastre em curto espaço de tempo.

O caos já era previsto antes mesmo de sua eleição, mas as chamadas forças democráticas, para se mostrarem simpáticas à boa parte da população, que demonstravam um evidente antipetismo, preferiram se omitir, com a doce ilusão de que 2022 era logo ali e a derrota do petismo, seguida do desastre previsto do governo fascista, as levaria ao poder.

Sifu…!

O desastre veio rápido, realmente. Em menos de 06 meses, a população em geral estava em pé de guerra. Assim como a poupança, os salários foram congelados, mas a inflação não! Greves explodiam a todo o momento, com repressão policial cada vez mais brutal, com mortes, prisões, tortura e sumiços. Aí, quando os caminhoneiros, individualmente, sem qualquer liderança ou organização sindical, começaram a parar por falta de dinheiro para pagar o combustível, cada vez mais caro, o Brasil entrou em pé de guerra civil. E o Exército interviu!

FHC morreu exilado na Avenue Fox, em Paris… Ciro Gomes e seus irmãos estão presos numa penitenciária de segurança máxima, em Porto Velho, para onde foram levados, também, vários outros políticos sem envolvimento comprovado com a corrupção investigada pela Lava Jato. Boulos está foragido, ameaçado de morte por terrorismo, e Marina está sob prisão domiciliar. Outros, sob investigação em várias das operações da Lava Jato, agora implantadas em todo o país, aguardam julgamento em outras prisões, todos, inclusive o ex presidente Lula sujeitos à pena de morte, aprovada em caráter de urgência no mês de janeiro, logo após a posse presidencial e antes da instalação do novo Congresso Nacional, eleito em outubro.

Que, aliás, foi fechado em julho. O Alto Comando Militar baixou uma série de Atos Institucionais, estabelecendo a censura prévia nos canais de televisão e emissoras de rádio – os jornais e revistas já tinham sido fechados com a decisão do Coiso, antes de ser deposto, de eliminar a publicidade do governo nos canais de comunicação tradicionais, transferindo a verba publicitária apenas para as redes sociais que lhe eram favoráveis. Os poderosos grupos econômicos , amedrontados, seguiram o exemplo, e os jornais e revistas desapareceram, assim como as bancas de revistas… Os blogs desfavoráveis foram censurados.

Em outubro, apesar das restrições militares, eu fui a uma feira literária em Porto Alegre, a convite da minha editora. Com ajuda dela (que já estava preparando o lançamento do meu livro na América do Sul), consegui viajar para a fronteira de carro e fugi para o Uruguai. Os milicos não gostaram, mas não podiam fazer nada… Eu tinha pedido asilo político, que foi concedido, já que meu livro, proibido no Brasil, era uma prova inconteste de perseguição política… No Brasil, eu estava de mãos atadas e boca fechada… Fora, eu podia ser um porta estandarte da nossa liberdade e continuar a luta pela sobrevivência de minha terra. É o que faço hoje… (continua)

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