Amor eterno

Vá a um parque frequentado por muita gente num domingo. Normalmente, você encontrará muitos casais, jovens de bicicletas ou patins, trintões brincando com os filhos nos balanços ou gangorras ou escorregadores, quarentões fazendo caminhadas e velhos sentados em bancos das praças ou caminhando ao ameno sol da manhã. Observe os jovens enamorados: estão sempre de braços entrelaçados, ou o jovem com o braço sobre os ombros da namorada ou, no mínimo, de mãos dadas. Observe, agora, os rostos: há um inevitável ar de posse neles… ‘Parem de olhar! Ela é minha! (ou ele é meu!)’

Observe, então, os velhos caminhando: inevitavelmente, estão de mãos dadas ou um segurando no braço do outro… E não há sinal de posse nos olhos, há um misto de ternura e amparo, uma cumplicidade baseada em dezenas de anos de (con)vivência, momentos alegres e tristes, aquele mesmo amor possessivo dos jovens que foram se transmudando em amizade, companheirismo, compreensão a cada dia juntos. Amor eterno? Certeza da posse definitiva? Costume? Falta de alternativa?

Nos tempos dos meus avós, casamento era eterno, selado na Igreja até que a morte os separasse. Não por amor, mas por interesse ou necessidade. Apesar de que minha mãe conta a história de um tio dela que foi estudar em Ouro Preto. Isto, na década de 30… Já era veterano por lá quando a filha de um fazendeirão da cidade decidiu estudar em Ouro Preto também (mulher querer ser algo além de professora já era um escândalo… imaginem uma mulher fazer uma faculdade fora!). Mas, filha única, o “coronel” quis fazer a vontade dela. Falou com a família de minha mãe e acertaram que meu tio-avô, jovem e bonito, “tomaria conta da menina”. Ele tomou direitinho… se apaixonaram e ela engravidou.

Isto era mais do que um escândalo na época. Eles foram obrigados a se casar, claro!, e ela ficou escondida na fazenda do pai até dar a luz (como se a sociedade local desconhecesse o fato!). Meu tio-avô se formou, voltou para a cidade, montou casa, viviam aparentemente uma vida normal juntos, ele, a mulher e o filho. Numa ocasião em que ela e o filho foram passar uns dias na fazenda do pai, ‘desapareceram’… O fazendeirão levou-a e o neto para longe do marido e pai, primeiro para outra fazenda em outra cidade, depois para São Paulo, e não permitiu mais que ele se aproximasse ou reclamasse seus direitos paternos (filha única, mãe já falecida, pai coronel do café, bem relacionado politicamente… essas coisas do Brasil de ontem… e, até, de hoje, infelizmente!)

Não se separaram legalmente. Meu tio-avô, algum tempo depois, se juntou com uma “parideira”… Para compensar a frustração amorosa, ele se meteu com a filha de outro fazendeiro, sem qualquer instrução como a amada ‘fugida’ – quando minha avó questionava a escolha, ele dizia que amor era único e eterno, ele precisava agora, apenas, de pernas abertas que lhe dessem herdeiros… E a parideira deu: seis!

Muitos anos depois, certamente depois da morte do pai, a amada voltou para a cidade onde meu tio-avô tinha terras e fora um profissional conceituado. Ele já morrera. E ela se aposentara como médica, mesma profissão do único filho, que continuava morando em São Paulo. Resmungou a família que ela voltara para reclamar os direitos de posse do filho sobre a herança do pai. Retrucaram os amigos que ela fora obrigada pelo pai a fugir do marido mas, eternamente apaixonada por ele (tanto que nunca mais se casara ou tivera algum homem), voltara para morrer e ser enterrada ao lado dele, no cemitério da cidade. Não sei se foi!

Naqueles tempos, amor não era muito valorizado ou considerado (‘Eu gosto de Fulano, senhor meu pai!’ ‘Fulano é pobre, Cotinha… Você vai casar com Sicrano, filho de coronel Quinzinho!’). Casava-se por interesse, nas classes superiores, e por necessidade, nas inferiores ou por obrigação, nas duas. Eternos, infinitos, inquebrantáveis amores só na literatura, de ontem e de hoje, apesar de tantas mudanças de costumes: Páris e Helena, na Ilíada de Homero, Romeu e Julieta, em Shakespeare, Heathcliff e Catherine n’O Morro dos Ventos Uivantes, de Emyle Brontë,  Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy em Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, Rhet Butler e Scarlett O’Hara em E o Vento Levou, de Margaret Mitchell, Florentino Ariza e Fermina Daza d’O Amor nos Tempos do Cólera, de Garcia Marquez, Anna Karènina e Alexei Vronsky ,de Tolstói, Dr. Jivago e Lara Antipova, de Boris Pasternak, Jay Gatsby e Daisy, de Scott Fitzgerald, Emília e Júlio em Bonsai, de Alejandro Zamora, Pedro Bala e Dora em Capitães de Areia, de Jorge Amado e tantos e tantos outros, geralmente sem um final feliz como nas novelas.

Que me desculpem os que ainda não leram algum dos citados acima ou assistiram suas adaptações para o cinema, mas vem aí um spoiler: de todos eles, apenas Orgulho e Preconceito e O Amor nos Tempos do Cólera têm um final aparentemente feliz, o encontro definitivo do casal apaixonado, depois de páginas e páginas de desencontros, sofrimento e desesperança.

E na vida real? No dia a dia dos casais comuns, na vida daqueles idosos andando de mãos dadas pelo parque, que não protagonizam romances eternos e novelas globais? Haverá amor eterno? Ou, apenas, o medo de ficar sozinho no fim da vida…?  Eu não sei. Me valho, então, daquele que considero o maior cantador do amor no Brasil, em versos e poemas musicados, Vinícius de Moraes, que, em 67 anos de vida bem vivida, regada a uísque, fumaça  e amores, dezenas de amores – só os casamentos efetivos foram 09! – escreveu:

De tudo, ao meu amor serei atento antes//E com tal zelo, e sempre, e tanto//             Que mesmo em face do maior encanto//Dele se encante mais meu pensamento//Quero vivê-lo em cada vão momento//E em seu louvor hei de espalhar meu canto//E rir meu riso e derramar meu pranto//Ao seu pesar ou seu contentamento//E assim quando mais tarde me procure//Quem sabe a morte, angústia de quem vive//Quem sabe a solidão, fim de quem ama//Eu possa lhe dizer do amor (que tive)://Que não seja imortal, posto que é chama//Mas que seja infinito enquanto dure.// (Soneto da Fidelidade)

Eu não sou interpretador de poemas ou romances. Quando estudava no colégio, havia aulas de interpretação de texto e eu nunca fui bom nisto… Aquela pergunta característica do professor, “O que o autor quis dizer com isto?” me incomodava profundamente. Eu achava – e acho até hoje – que não há como interpretar sentimentos. Sentimento sente-se! Um poeta como Vinícius é capaz de amar dezenas de mulheres ao longo de 50 anos… mas mostra que não é capaz de amar uma única mulher ao longo de 50 anos! E escreve um poema maravilhoso sobre isto… E alguém é? (a pergunta vale para as mulheres, também). Alguém consegue transmudar paixão em amor? Alguém consegue transmudar amor em amizade?

No tempo dos meus avós, sexo era algo pecaminoso. Fornicava-se (o verbo é daqueles tempos, também) porque Deus mandava povoar a Terra de gente que amasse a Deus sobre todas as coisas. Os homens tinham o direito de ordenar às mulheres para abrirem suas pernas e, como as mulheres oficiais não podiam fazer isto o tempo todo – elas estavam grávidas ou amamentando seus filhos ou não tinha graça nenhuma, pois era uma obrigação e não um prazer – eles tinham o direito de frequentar bordéis e manter amantes, para satisfazer e comprovar  o que Deus lhes deu, a masculinidade!

Enquanto isto, os romances, os filmes e as novelas criavam a fantasia do amor que sofre por 150 capítulos ou uma hora e quarenta minutos, mas é feliz no último capítulo ou minuto… Me lembro de uma novela dos anos 70, O Casarão, de Lauro César Muniz, que se passava em três épocas distintas, mostrando a vida de um casal que foi proibido de se amar na juventude, e se reencontra na velhice, quando, enfim, realiza o sonho nunca desfeito de ficar junto. Me marcou muito a cena final, quando o casal, idoso, se encontra num restaurante. Ele pede para o garçom colocar determinada música (Fascinação) e ela pergunta: “Esperou muito?” E ele: “40 anos!”

O que me incomodou na época – eu estava com uns 30 anos, no primeiro casamento, com duas filhas pequenas, me sentindo um vitorioso, emocional e profissionalmente – foi a impossibilidade da realização efetiva do que tanto ansiaram na mocidade… Dois velhos iriam conseguir sentir prazer na cama? Dois velhos iriam conseguir ter filhos próprios? Dois velhos iriam se libertar das amarras construídas ao longo de toda a vida? O que os dois velhos iriam querer mais da vida?  Andar pelo parque de mãos dadas? Um estar segurando a mão do outro no leito de morte?

Eu estou com 70 anos agora. Meus tempos de sub amante latino (já escrevi sobre isto aqui, quando falei dos meus tempos de esbórnia), que duraram pouco, acabaram há mais de 30 anos. Estou velho, pois… mas consciente da solidão dos passos futuros e da minha incapacidade de amar novamente, a não ser como auto enganação. Já amei muito, mesmo que solitariamente, às vezes, ou sem contrapartida.

Quando tinha uns 07, me apaixonei perdidamente, pela primeira vez, por uma menina de 08 que certo dia, sem quê nem porquê, me mostrou seu corpo  (um corpo de 08 anos de idade!!!) Eu não senti qualquer sensação diferente ou tinha ideia do que fazer com aquele corpo sem roupa à minha frente. Nem ela! A gente só sabia que era proibido… e isto causava uma gostosa sensação de perigo. Ou seja, eu me apaixonei pelo gesto, pela ousadia… Não foi eterno e, muito menos, infinito! Acabou logo, no Natal, quando quis dar um anel para ela, como prova de amor, e virei alvo da gozação de adultos, amigos e da própria amada (já contei esta história aqui, também).

Nos 63 anos posteriores, me apaixonei outras vezes, principalmente na juventude (como já escrevi aqui também, eu era um tímido crônico, e bastava uma menina ou uma mulher me dar alguma atenção para eu me apaixonar) e amei verdadeiramente, casei e me separei duas vezes, ajudei a construir duas famílias e cheguei, enfim, à idade dos velhos de “O Casarão”. E, infelizmente, continuo achando o que achava aos 30: qual o sentido de ficar 40, 50 anos (ou 20 ou 30) sem viver com a pessoa amada? Sem construir uma vida com a pessoa amada, separados um do outro, como mostram os romances, os filmes e as novelas, de que vale o amor eterno?

 

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