Cannabis sativa (I)

Nos meus tempos de faculdade, em plena ditadura, eu experimentei maconha. Havia uma espécie de satisfação revolucionária em fazer algo que era proibido, como se, por fumá-la, em reuniões de estudo ou festinhas particulares, nós estivéssemos contestando e desafiando um regime detestável, que censurava nossas vozes e impedia nossas manifestações de discordância, nossa liberdade de ser, enfim. Se não fosse isto, de qualquer modo, esta era uma boa desculpa para a gente confrontar os mais velhos.

Mas eu experimentei só… mesmo! Algumas vezes… Meio século depois de fazê-lo, a minha lembrança sensitiva é que eu não gostei. Tentei aprofundar as lembranças, mas o que a memória me mostra hoje, é um grupo de jovens reunidos num pequeno apartamento de um deles, com pedaços de pizza e garrafas de cerveja sobre alguma mesinha, uma ou outra colega abraçada a um ou outro colega, todos rindo de alguma coisa sem graça. Minha percepção hoje, é que a gente ficava bobamente alegre, com uma sensação de euforia inexplicável.

Há, porém, uma outra sensação que se sobrepõe a esta: o gosto amargo que ficava na boca depois de dar os ‘tapas’ na maconha. Tantos e tantos anos depois, quando me lembrei deste período da minha vida, esta sensação foi imediata: a boca ficou seca, as narinas respiraram um ar quente, a garganta exigiu água… A mesma sensação que senti quando dei uma tragada num cigarro mais de 10 anos depois de ter parado de fumar.

Junto com esta lembrança, veio outra de muitos e muitos anos depois, numa praia do Nordeste, passando férias com a família. Eu estava sentado numa barraca  olhando as crianças e demais parentes brincando com as ondinhas que batiam na areia quando apareceu uma figura carregando uma sacola e sentou-se perto de mim, na areia mesmo. Me pareceu um pós-hippie, um cara de uns 40 anos, de cabelos compridos desgrenhados presos por uma fita na testa, anéis nos dedos e brincos nas orelhas e com roupas coloridas, vendendo bijuterias naturalmente feitas por ele próprio.

Eu sou meio arredio a estranhos, mas a figura me interessou e, antes que ele me oferecesse alguma coisa, comecei a conversar com ele. Era um hippie autêntico, participante ativo do movimento desde o momento em que ele se instalou no Brasil, meados dos anos 60, acompanhando uma tendência mundial de jovens cansados de guerras estúpidas e pregando o pacifismo e a liberdade de ser, cujo grande ápice foi o Festival de Música de Woodstock, numa fazenda de uma pequena cidade americana, Bethel, em agosto de 1969, e que reuniu 400 mil jovens, que pediam “ban the bomb” (“proíbam a bomba”), “peace and love” e fumavam maconha adoidado…!

Bigi (ele explicou que o nome verdadeiro era João Alberto, mas ele era fanático pelo conjunto The Bee Gees, originando o apelido) gostou do meu interesse, aceitou uma cerveja, e começou a contar um pouco da sua vida desde os 18 anos, quando saíra de casa para acompanhar uma hippie errante que estava passando por Belo Horizonte, vendendo brincos, anéis e colares feitos de conchas na feirinha da Praça da Liberdade. Ainda viviam juntos, numa praia de Fortaleza, tinham três filhos que moravam com os avós maternos, enquanto eles rodavam as praias brasileiras, ainda certos da vida livre que sempre tiveram e que continuariam tendo.

Terminou a latinha de cerveja, remexeu numa espécie de embornal de pano que trazia pendurado ao pescoço, tirou de lá um saquinho e um pequeno cachimbo de madeira e me ofereceu: “Um tapa? Esta é das boas, eu garanto!” Agradeci, disse para ele ficar à vontade, mas pedi para ele se afastar caso minhas filhas voltassem para a mesa.  Como elas não voltaram, ele teve tempo de fumar sossegado, enquanto eu perguntava: “É livre assim aqui na praia?” “É livre em qualquer lugar, meu irmão… Se você não é preto e pobre, ninguém se intromete. No meu caso, então, que vendo minhas coisas, pago minha comida e meu pouso… ninguém enche o saco! Por falar nisso, não quer comprar uns brincos para as filhas? Ou para a mulher? Tenho umas biju aqui feitas pela minha mulher, que é uma artista…” E foi puxando da sacola algumas bijuterias… Junto, vieram dois cachimbinhos de madeira pintada que me interessaram (como enfeites, claro!), que acabei comprando junto com uns brincos e uma pulseira muito delicada e bonita.

Recordei estas cenas da minha vida assistindo um programa de tevê exclusivo sobre a cannabis sativa. Isto não é comum, porque foi no horário nobre, 21h30, mesmo considerando que era um canal pago. O apresentador famoso, Pedro Bial, levou um cientista, um antropólogo estudioso do assunto, que já militou na política de segurança, e um ator, escritor e rapper, oriundo de uma das favelas do Rio de Janeiro, todos favoráveis à descriminalização da maconha, exceto o último, MV Bill, que aceita a liberação de seu uso mas acha que isto tem que ser feito cuidadosamente e ser muito bem planejado, para evitar uma situação ainda pior que a tragédia em que se transformou o tráfico de drogas no Brasil atual.

É comum nós, jornalistas, termos um conhecimento bastante amplo dos mais diversos assuntos, vista a natureza de nosso trabalho. “O jornalista é um especialista em generalidades”, como disse um velho diretor da Globo. Além disso, eu, que leio compulsivamente desde garoto, me considero um cara que dispõe de uma bagagem de conhecimentos bem acima da média. Por isso, fiquei surpreso com algumas informações dadas pelo neurocientista Stevens Rehen, participante do programa, que me levaram a pesquisar mais… descobrindo coisas como:

– a maconha é uma planta como tantas outras da natureza que tem propriedades estimulantes, algumas delas encontradas no próprio corpo humano;

– diferente da bebida alcoólica, fumar maconha não provoca dependência;

– a proibição da maconha tem razões muito mais de preconceito e racismo ou econômicas que científicas;

– a primeira lei proibindo o uso da maconha foi de Napoleão Bonaparte, quando ele invadiu o Egito, em 1798. Motivo: seus soldados diziam que os egípcios, quando consumiam a  erva, ficavam mais bravos!

– no início do século 20, vários países, inclusive o Brasil, criminalizaram a maconha. As razões eram, basicamente, as mesmas: quem consumia o produto eram as camadas mais pobres da população, o que “as tornava menos aptas ao trabalho”;

– nos Estados Unidos, a razão foi a imigração de mexicanos (assunto que voltou às manchetes hoje): criaram uma história de que a erva transformava os mexicanos em assassinos, editando-se uma lei em El Paso, Texas, principal portão de entrada à época, que   qualquer imigrante pego com maconha tinha que ser devolvido ao México, antes que matasse um americano;

– economicamente falando, por sua vez, para desbancar a fibra da cannabis (maconha e cânhamo são da mesma família), uma  concorrente natural que dominava o mercado, a Dupont, que desenvolveu e patenteou o nylon, uma fibra sintética, em meados dos anos 30, criou a fama, para a maconha, produzida por amarelos e negros ao sul do Equador, de alucinógeno perigoso para a saúde dos jovens brancos da Europa e dos Estados Unidos;

– como o mundo dá voltas, em 1976, a Holanda liberou a maconha para uso recreativo e, em 1996, a Califórnia foi o primeiro Estado americano a liberar seu uso para fins medicinais, logo seguido por outros 18 Estados. Na América do Sul, o Uruguai já fez isto também, há 04 anos.

– todos estes Estados e países reduziram os crimes provocados pelo narcotráfico (quem dispuser de tempo, vale a pena assistir o programa integralmente. O faro de ser da Globo não significa que seja intragável ou inassistível…!)

(continua)

 

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