Durante o governo FHC, considerado até então um sociólogo de esquerda, o liberalismo de direita comeu solto. E a propaganda pró privatização também. Para quem não gosta ou não se aprofunda muito em temas político-econômicos, liberalismo é um conceito derivado dos estudos de Adam Smith, um economista inglês, que pregava, em termos bem simples, que a riqueza era consequência do potencial de trabalho sem a interferência reguladora e a intervenção do Estado. Ou seja: menos Estado e mais Mercado era a receita de prosperidade de um indivíduo ou sociedade.
Em seus dois mandatos, o PSDB praticou esta teoria ao extremo: privatizou tudo que foi possível, como as estatais de energia e de telefonia e até a Vale do Rio Doce, vendida por 3,3 bilhões de reais em 1997, uma empresa que hoje vale 53 bilhões de dólares. O grande argumento para as privatizações então, era a necessidade do governo impedir o crescimento da dívida pública, já explosiva, ou seja, ter caixa para sustentar o enorme custo do Estado, principalmente por causa da Previdência Social (a história é antiga, como se vê). O interessante é que, mesmo com a entrada, em ‘dinheiro vivo’ no caixa, de quase 60 bilhões de reais com as privatizações, a dívida pública não baixou, ao contrário, cresceu: era de 270 bilhões de dólares em 1996 e triplicou para 881 bilhões em 2002, quando Lula, enfim, venceu as eleições.
Mais interessante ainda, todos os envolvidos com os processos de privatização, hoje donos de consultorias poderosas ou CEO’s de multinacionais – que ganham rios de dinheiro como donas das empresas privatizadas à época – continuam tecendo loas ao liberalismo econômico (oh! que surpresa!) e, batendo na mesma tecla, na necessidade imperiosa da reforma da Previdência Social, exigindo a privatização de tudo o mais que ainda permaneça nas mãos do Estado brasileiro, como PetrobraX, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Eletrobrás…
Há uma reportagem interessante publicada pela Folha de São Paulo em dezembro de 1999, fazendo um balanço das privatizações no âmbito do governo federal até então e mostrando que a arrecadação propiciada por elas foi de US$17,86 bilhões, considerando que vendeu-se por US$56,17 bilhões um patrimônio da ordem de US$38,31 bilhões. Para que isto fosse alcançado, o governo brasileiro concedeu uma série de benefícios aos compradores, tais como: US$15,92 bilhões em créditos tributários, US$8,96 bilhões em moedas podres validadas e US$20,29 bilhões em financiamentos antes e depois das privatizações. Não é atoa que a quadrilha ora no poder está fazendo de tudo para vender tudo que ainda resta de estatal… e está conseguindo com irrestrito apoio de parte do Legislativo, do Judiciário e da população, que acha que torcer pelo país é vestir camisa verde amarela e bater panela…
De qualquer modo, no imaginário da maior parte da população, a privatização não foi ruim naquilo que a atingiu diretamente como, por exemplo, na telefonia. Evidentemente, beneficiada pela enorme evolução tecnológica que estava acontecendo neste setor – o surgimento dos celulares, por exemplo – o fato é que a Telebras e suas subsidiárias estaduais não tinham caixa para acompanhar esta evolução com a mesma rapidez e presumível “eficiência” que as empresas privadas (lembrem-se: a dívida pública era explosiva!). E, com a privatização, em pouco tempo, a telefonia fixa, sempre problemática e inalcançável em algumas áreas do país, quase tornou-se obsoleta, substituída pelos celulares, hoje um artigo de primeira necessidade até para crianças de tenra idade.
Ainda me lembro do meu primeiro celular, comprado assim que a Americel, hoje Claro, empresa do grupo mexicano América Móvil, se instalou em Brasília, se não me falha a memória, em 1997. Depois de enfrentar uma imensa fila que se estendia pelo quarteirão de um prédio na Asa Norte, consegui adquirir dois celulares, para mim e para minha mulher. Para os jovens de hoje, especialmente as jovens, que costumam carregar seus celulares no bolso traseiro da colante calça jeans, dando um certo charme ao contorno glúteo, informo que o celular de então não permitia este chamariz: era um tijolão de uns 25 cm de comprimento por uns 08 de largura por uns 03 de espessura! Não cabia nem em pochete, muito usada naquela época. E já tinha evoluído um bocado, porque os primeiros celulares, além de grandes, pesavam 01 quilo!
Estou recordando esta história ao comentar a privatização por causa de ‘entreveros’ que tive recentemente com operadoras, causados por problemas que são uma das piores consequências deste processo irresponsável realizado no Brasil, privatizações que foram feitas apenas em nome de uma postura política baseada numa crença ideológica (Mercado x Estado), e que precisavam ser feitas rapidamente, sem respeitar o interesse da população, sem garantias reais de uma boa prestação de serviços, sem uma regulamentação objetiva de procedimentos que exigisse a efetiva concorrência entre as empresas donas dos serviços.
Daí que passados 20 anos da entrega desenfreada de ativos estatais para poderosos grupos nacionais e estrangeiros (uma safadeza que está se repetindo novamente agora), nós temos dois dados assombrosos na área da telefonia: em 2017, o Brasil tinha 236,5 milhões de celulares (148,5 milhões de pré-pagos) para uma população de 207,7 milhões de pessoas; e a telefonia celular é a campeã de reclamações registradas nos Procon’s, seguida pela telefonia fixa, seja no Brasil todo, com 13,4 e 9,5%, respectivamente, seja em qualquer um dos municípios brasileiros, como em São José, Santa Catarina, onde as campeãs de reclamações são a Oi, a Net/Claro e a Tim… e ainda tem a GVT e a Vivo no 6 º e 7º lugares.
Quer dizer, a livre concorrência que nos foi vendida como a garantia de bons serviços e preços baixos para os consumidores, numa sadia disputa do mercado, cada uma das operadoras oferecendo promoções e vantagens mais tentadoras, não se concretizou nestes aspectos. O que nós estamos recebendo desde que a privatização foi realizada no setor de telefonia é uma concorrência brava para ver qual delas recebe mais reclamações dos usuários. Sem falar nas enganações e enrolações… Que foram os casos de meus ‘entreveros’ com Claro e Oi. E que conto… nos próximos capítulos.