Jovem Guarda

Para quem já está descendo o morro da vida como eu, mas com vivência suficiente para não mentir mais para si próprio e com experiência bastante para comparar épocas e gerações sem se prender àquela mesmice de “no meu tempo era bem melhor!” que, no fundo, não passa de uma vontade imensa de renegar a velhice e viver os tempos atuais com a idade que tinha naqueles “bons tempos”, confesso que há um aspecto da minha juventude que eu gostaria de ver repetido hoje: minha primeira escolha musical ocorrida em meados dos anos 60, mesma época em que assumi uma postura política.

Como eu já escrevi aqui, ao tomar bomba no 3° ano de ginásio, eu fui transferido para o recém-inaugurado Colégio Estadual da Serra que, considerando a porta de saída, tinha, como vizinhos, à esquerda, o Convento dos Dominicanos e, à direita, o Clube de Tiro de Belo Horizonte. Minha turma era formada de jovens moradores do bairro, acrescida de 04 ‘veteranos’, que haviam tomado bomba no Estadual Central, eu, Ney, Marco Antônio e Wandeir, os três primeiros interessados em política – estávamos em plena efervescência das reformas de base propostas pelo governo Jango – e Wandeir, dono de uma voz de locutor de rádio (o que ele acabou sendo, além de professor), vidrado em música.

Durante a semana, quando faltava um professor ou tinha aula de Moral e Cívica, que a gente ‘matava’ (o professor Zé Vieira, pai do futuro governador e vice-presidente Aureliano Chaves já estava bem idoso, fazia a chamada no início da aula, virava para o quadro para escrever a matéria e não percebia a gente pulando a janela da sala, nem nunca notou a nossa ausência ou, se notou, nunca disse nada), e ia discutir política com os freis.

Já no sábado, a gente descia para a casa do Wandeir, que era perto do colégio, e passava um bom tempo aprendendo música com ele, que tinha uma imensa coleção de bolachões antigos e novos para todos os gostos. Como também já escrevi aqui, foi lá que conheci a bossa nova, Elis Regina e The Beatles.

Com a ditadura, a coisa ficou sombria do lado político: frequentar os dominicanos passou a ser perigoso, a disciplina do colégio ficou bem mais rígida – havia bedéis e presumíveis ‘dedos-duros’ entre professores, funcionários e, até mesmo, colegas de sala. Mas a casa do Wandeir continuou sendo um refúgio, onde podíamos ouvir os lançamentos musicais enquanto debatíamos a situação política, combinando atos que, dificilmente conseguíamos executar.

Musicalmente, como leais defensores da teoria de que o movimento musical brasileiro devia ser de oposição à ditadura, o que a MPB, que derivava da bossa nova, mostrava ser, não admitíamos a presença do novo movimento musical surgido à época, chamado Jovem Guarda ou iê iê iê (yeah, yeah, yeah, gritado pelos Beatles em algumas canções, como She Loves You)  que nos parecia alienado, descomprometido com a realidade nacional e uma forma das gravadoras estrangeiras e emissoras de rádio e tevê capitalistas ‘tentarem desprezar’ a livre manifestação da ‘rebelada’ juventude brasileira.

Nossa inocência era imensa, claro, bem como a contradição, que é uma característica saudável da juventude (todos gostávamos dos revolucionários Beatles, mas deplorávamos o iê iê iê nacional); se bem que todos hão de convir que há uma diferença brutal entre ‘O Calhambeque’ e Travessia…

Que me perdoem as sessentonas fãs do “Rei”, mas quem tem um pouco de sensibilidade musical, é capaz de, a qualquer momento da vida, alegre ou triste, sozinho ou no meio da multidão, ouvir Travessia e se emocionar, pois é eterna. Creio que o próprio Roberto Carlos, que tem composições bastante sensíveis em sua fase romântica, deve considerar O Calhambeque expressão de um período irresponsável da vida mas que, claro, o guindou à posição de ‘Rei’.

Tirante a qualidade musical, o que imperava entre jovens de classe média naqueles tempos “russos”, porém, era o embate político e, com isso, mesmo que Roberto Carlos e sua turma fossem avalizados como uma espécie de introdutores do rock and roll no Brasil, o que não deixa de ter um fundo de verdade – Erasmo Carlos era um roqueiro, fã de Elvis Presley, quando se juntou a Roberto e Wanderleia no comando da Jovem Guarda – eles não faziam parte da “patota” que encarava a ditadura.

Daí, a juventude ‘politizada’, onde eu me inseria, acusava o grupo de aproveitador, alienado, americanizado, difusor não de um movimento musical jovem (que estava revolucionando o mundo), mas do ‘american way of life’, capaz  apenas de colocar letras idiotas em músicas importadas (Splish Splash, um grande sucesso por exemplo, era uma música de 1952, cantada pelo Bobby Darin) e seguir a moda vinda de fora (como os cabelos compridos). Havia uma ‘lenda’ na época, que dizia que Roberto Carlos era careca e usava peruca… assim como os fãs da Jovem Guarda diziam que Elis e Caetano  eram maconheiros… lendas provavelmente alimentadas pelas gravadoras para incentivar vendas e ganhar muito dinheiro em cima de uma disputa que movimentava enormes interesses  comerciais.

Eu me lembrei desta história toda porque recebi de uma querida amiga um vídeo da Jovem Guarda assinalando que “Nós somos a geração que viu o mundo mudar… isso é incontestável. Ver o lado alegre é muito bom…”  Tenho minhas dúvidas… Claro que recordar o lado alegre das coisas e das situações passadas é muito bom! Melhor ainda é perceber que , participando ativamente ou não da efervescência daqueles anos (vendo ou fazendo o mundo mudar), os jovens de então ampliaram seus horizontes, derrubaram muros, abriram uma larga trilha para que tabus e preconceitos fossem sendo substituídos por maior liberdade de expressão, de convivência, o machismo arraigado passou a ser contestado e as mulheres começaram a descobrir seus direitos, profissionais, trabalhistas, sociais e feministas…

Mas o fato concreto é que já se passaram 50 anos, nós envelhecemos e as revoluções que iniciamos naquele tempo – política, pessoal, sexual, espiritual – foram encampadas e conduzidas, com a habilidade costumeira, por um processo bem mais poderoso que as nossas vontades e anseios juvenis: o dinheiro apoiou e incentivou aquilo que podia gerar mais dinheiro, e freou ou controlou aquilo que podia representar algum perigo para os donos do poder. Ou seja: a pílula anticoncepcional, por exemplo, virou produto de primeira necessidade a ser carregada nas bolsas femininas (e de alguns bolsos masculinos, mais responsáveis), libertando a sexualidade secularmente reprimida e livrando as mulheres de uma gravidez inoportuna e aprisionante, mas o aborto continuou sendo considerado crime punível com prisão e danação eterna (para as pobres, porque as ricas sempre tiveram clínicas e médicos à disposição).

Enfim, nós evoluímos, mas não ultrapassamos todas as barreiras que queríamos então. A democracia ainda custou muito tempo para ser reimplantada e, depois de 30 anos, virou esta palhaçada em que vivemos hoje, uma palhaçada em que a velha e sempre onipresente elite inventa todos os meios, jurídicos, políticos, midiáticos, econômicos, para controlar e manter a população afastada das decisões que possam leva-la a assumir qualquer caminho que ameace o poder econômico que ela, elite, domina e usa.

Não era minha intenção falar de política quando decidi responder à minha velha amiga através do blog, agora que nos vemos tão pouco. Mas, a política está entranhada na minha vida desde que eu me conheço por gente. Tentei me afastar dela nos últimos 30 anos, vivendo em função do trabalho, da família e do dia a dia construído em torno das necessidades básicas do ser humano, amor, saúde, alimentação, lazer… ser ‘feliz’, enfim, independentemente da situação em volta. Cometi um erro, claro… daqueles erros que, como disse em outro texto,  não são corrigíveis…

De qualquer modo, eu só fui dar algum valor ao rei da Jovem Guarda exatamente na sua fase romântica, na década de 70, quando ele gravou Detalhes e Como dois e dois são cinco. Acho que foi o único bolachão que eu comprei dele e que, salvo engano, ainda chegou a ser tocado nos primeiros tempos da Chalueo original, minha chácara em Goiás, numa época em que os sertanejos ainda não tinham invadido nossas emoções. Só que, quando comprei, já não existia mais Jovem Guarda. É a vida! O que não me impede de, mesmo 50 anos depois, gostar de ouvir Roberto Carlos, especialmente junto com Caê…

Coincidentemente, assisti um programa na mesma semana que recebi o post, cujo entrevistado era o Tremendão Erasmo Carlos, ainda ativo, escrevendo poemas de amor, compondo e cantando aos 77 anos. Na plateia, sua esposa, uma bela jovem 50 anos mais nova, o que me deu uma enorme esperança de encontrar minha digitadora… Alguém aí sabe me dizer onde se reúnem jovens ainda românticas e sonhadoras (se é que ainda existem) que seriam capazes de se derreter por um velho meio fora de forma (careca e sem peruca), mas ainda capaz de dizer “É uma brasa, mora!”?

 

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