A reação de um jovem leitor do meu blog quanto a um texto recordando os tempos sombrios da ditadura (De novo não!) me levou a escrever outro texto, bem mais longo (Brasil Nunca Mais I a IV) relembrando fatos que, provavelmente por autodefesa, havia apagado da memória. E logo no primeiro capítulo, outro leitor se manifestou contestando minha visão daqueles tempos, que foi baseada, claro, na minha vivência na ditadura..
Não se trata mais de um jovem que não viveu a ditadura e que acha, hoje, quando vivemos numa democracia, mesmo mambembe, que uma ditadura permitiria a ele escrever, o que muitos escrevem nas redes sociais, ofendendo pessoalmente o político ou o partido ou uma instituição que ele não gosta… Pelo comentário, este se apresenta como um senhor da minha geração – com ou beirando os 70 anos – que anda saudoso dos tempos sombrios (sombrios para mim… para ele parece ter sido um céu de brigadeiro!)
Se é isto mesmo, presumo que ele se formou, assumiu um bom emprego ou montou seu próprio negócio, casou, teve filhos e sobreviveu, com dignidade, estes últimos 50 anos, passando não apenas pela ditadura como pela redemocratização, ou seja, pelos governos eleitos de Sarney, indiretamente, e diretamente, de Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e, via golpe constitucional, de Temer. Agora, provavelmente com netos, sente saudades daqueles tempos ‘seguros e tranquilos’, talvez porque a aposentadoria não lhe fez bem, física e/ou financeiramente.
Diz ele: “Eu era universitário da UnB e NUNCA FUI ADMOSTADO por algum militar. Estudava, trabalhava, me divertia sem medo, pelo contrário, voltava a pé para casa , de madrugada, sem ter medo de ser assaltado ou ser torturado.” Evidentemente, houve milhões como ele. Que se acomodaram, que se omitiram ou que, simplesmente, como havia censura brava da imprensa, não tinham o menor conhecimento do que estava acontecendo, exatamente aqueles milhões de brasileiros para quem o governo, qualquer governo, é aquele ente que fica lá nas alturas, a léguas de distância e só aparece de vez em quando para ‘encher o saco’ de quem está aqui embaixo, ralando para ganhar a vida.
Os que tomaram conhecimento, ou enfrentaram e foram presos, torturados, assassinados ou, como disse Francisca em sua traumatizada acusação à minha ‘covardia’, se esconderam… (Brasil Nunca Mais IV). Interessante, aliás, ele afirmar que vivia “sem ter medo de ser… torturado”… Será que ele sabia que havia tortura no Brasil dos militares e concordava com esta prática condenada pela sua crença? (ele fala muito em ‘Graças a Deus!)
Me impressiona (eu sei que o português correto é impressiona-me, mas eu não sou correto… segundo meu leitor, eu sou ‘comunista’) como os defensores de regimes duros misturam o direito de um ser humano expressar sua postura política, social, humana enfim, com segurança pública. O medo continua sendo a melhor arma para os os partidos de direita e os governos ilegítimos conquistarem ou se manterem no poder e para os desprovidos de consciência política aprovarem e aplaudirem um governo sem legitimidade.
Eu me lembro da tranquilidade e da segurança que eu vivia no governo JK, uma democracia plena, mas acusada e xingada de corrupta pelos partidos contrários de então. Eu era garoto e jogava bola na rua, em pleno centro de Belo Horizonte… a gente, garotos de 10, 12 anos ia a pé, sozinhos, para o Parque Municipal e lá ficava duas, três horas, brincando sem qualquer risco – e o Parque não tinha nem as grades que tem hoje! Assim como me lembro do risco que se tinha na mesma Belo Horizonte nos tempos da ditadura.
Eu já morava em Brasília, mas meus pais continuavam vivendo em Beagá, no mesmo prédio, a dois quarteirões da Praça Sete, onde eu passei a infância e parte da maioridade, brincando de pique, de pega-bandeira, jogando finca e bolinha de gude, estudando, trabalhando. A Rua dos Tupinambás, entre Avenida Amazonas e Rua da Bahia, então, final dos anos 70, tinha um monte de prédios comerciais, um prédio residencial, o Mantiqueira, onde morei, e estacionamentos privados. A rua, agora asfaltada e sem árvores, era passagem e ponto de ônibus e, por isso, campo de ação de muitos pivetes. Que costumavam dormir nas escadas das entradas dos prédios. E achacar quem descia dos ônibus ou quem saia dos prédios.
Minha mãe, sessentona, para fazer compras num supermercado a uns 100 metros de casa, tinha que sair de braço dado com uma vizinha, pois qualquer um sozinho, corria o risco de ser atacado por dois, três pivetes no meio da rua, em plena luz do dia… Quando eu passava por lá, a serviço, e ficava na cidade à noite, marcando um encontro com algum amigo ou ex-colega de faculdade, eles faziam questão de me pegar e deixar na porta do edifício porque a gente podia ficar conversando até mais tarde, e era um perigo esperar um taxi na porta de um barzinho ou restaurante, ou descer do taxi na porta do prédio.
Meu pai tinha um grupo de companheiros de xadrez que se reunia, para jogar, nos fins de semana. Me lembro (Lembro-me) de um deles, mais velho, sêo Orestes, que chegou lá em casa um dia, logo depois da entronização do general Castelo Branco como primeiro general-presidente, com um olho inchado e roxo, procurando o médico e não o companheiro de xadrez. E explicou que estava indo para a casa da filha, perto do Minas Tênis Clube para fotografar a netinha recém-nascida. Tinha descido do ônibus na Praça da Liberdade, onde ficava o Palácio do Governo. Estava atravessando a praça quando foi interceptado e ADMOESTADO por 04 soldados, que o mandaram encostar de mãos levantadas e pernas abertas numa das imensas palmeiras de lá, enquanto tiravam a máquina fotográfica pendurada em seu ombro. Fizeram aquela “educada” revista completa, berrando ‘o que você está fotografando aqui no Palácio?’ Ele tentou se virar para explicar e recebeu uma coronhada na testa, que acertou em cheio a sobrancelha direita. Quando o sangue jorrou, um deles tirou o filme ainda virgem da máquina, jogou a máquina no chão e pisou até arrebentar… e saíram como se nada tivesse acontecido. (continua)
Importante: as imagens abaixo são recentes… da intervenção militar no Rio de Janeiro, e não são nem um pouco diferentes do que as que a gente viveu durante a ditadura… Há apenas uma diferença: naquela época, os soldados não chamavam ninguém de cidadão! Ah! E ninguém era liberado com um agradecimento pela “colaboração”!