Depois da janta, todos se retiraram e Francisca retomou sua história:
— Aí, fui ‘promovida’ e mudei para São Paulo. Virei gráfica em Santo André. A missão era a mesma, convencer gente a aderir ao movimento e promover greves. Só que, agora, o alvo eram operários. Não durei muito tempo… Caí, como se dizia, então.
— Foi dedurada?
— Não, acho que não… Nós éramos muito amadores, idealistas, achávamos que a razão estava conosco e, por isso, nunca seríamos pegos. Eu fui… É claro que havia policiais disfarçados de trabalhadores também… Destino? DOI-CODI do II Exército. Fiquei lá três meses… era peixe pequeno, não tinha contato direto com os chefes da Organização, não conhecia nomes, só alcunhas, mas descobri, realmente, até onde aqueles nojentos de Belo Horizonte devem ter chegado durante a Ditadura: na primeira quinzena, fui estuprada várias vezes, fu pendurada no pau de arara, enfiaram mangueira com água na minha vagina, na minha boca, cortaram um dos meus mamilos com canivete, arrebentaram o tímpano do ouvido direito, enfiaram um prego no meu joelho… Nos outros dois meses e meio, fui “recuperada” fisicamente para me entregarem ao meu pai, com uma recomendação bem clara: sossegue o facho, moça, se não o que aconteceu com você aqui, acontecerá com suas irmãzinhas…!
— O mundo é cruel, Francisca… ele roda, roda e acaba voltando ao ponto de partida!
— Pois é… Meu pai, enfim, escutou minha história e tentou compensar: me mandou para a França, onde estudei Editoração. Ele teve um AVC, ficou paralisado e eu tive que voltar e assumir os negócios. Mas, não quero ficar por aqui. Vivo sempre com a impressão que tem alguém me seguindo nas ruas. Eu paro de repente, olho para trás e vejo um sorriso, apenas um sorriso, sem rosto… o sorriso do cara que me dava tapões nos ouvidos enquanto alguém atrás de mim enfiava a mangueira d’água no meu ânus…
— Sinto muito, Francisca… Eu…
Ela se levantou devagar, me olhando fixamente, e disse: “A ditadura continua aí, as torturas não pararam! Ninguém tem o direito de se esconder…!” E foi para dentro da casa. Eu fiquei lá, parado, totalmente perdido, quase uma garrafa de uísque bebida e repentinamente sóbrio, sem saber se saia correndo, se esperava ela voltar para tentar explicar minha ojeriza à qualquer tipo de violência…
O marido apareceu, colocou uma dose de uísque puro para ele e outra para mim e perguntou: “Vocês se conhecem de onde?” Eu expliquei. Ele sentou-se e falou pausadamente, tentando ser bem claro em seu português italianado: “Txica sofreu muito na prisão e nunca se recuperou totalmente. Quando ela encontra alguém daqueles tempos, tem que desabafar e, aí, entra numa espécie de surto. Passa um, dois dias prostrada na cama, distante da vida, depois retoma a rotina. Esquece completamente que viu alguém daquela época. Por mim, já tínhamos voltado para a França, mas ela acha que os sobreviventes têm que continuar aqui até a ditadura acabar. Vou te pedir um favor para nós dois: você está com um serviço na editora, não é? Quando tiver alguma coisa para conversar ou acertar, fale com o Seabra, o gerente. Quer que eu te leve para o hotel?”
Eu me levantei, agradeci, pedi mil desculpas e disse que ia andar um pouco. O dia amanhecia e caminhei, sem sentir (era longe), pela Avenida Amazonas até a casa de meus pais. Tomei um banho e fui para o aeroporto tentar antecipar o vôo. A vida seguiu em frente. Os trabalhos gráficos ficaram muito bons, o que me valorizou profissionalmente e eu, provavelmente como auto defesa, desapareci com Francisca da minha mente. Até agora!
O documentário que despertou tudo isto tão detalhadamente é este aí abaixo. Acho que ele deveria ser passado obrigatoriamente em todas as escolas do país. Se a estupidez daqueles tempos tivesse sido mostrada desde que o Brasil se redemocratizou ou, pelo menos, a partir da Constituição de 1988, o país não estaria vendo pessoas que não viveram aqueles tempos sombrios defendendo regimes de força e ditaduras, disfarçadas ou não, nazifascistas, comunistas, de militares, do Judiciário ou de um único partido político, nem velhos saudosos, em passeatas, a pedir a volta dos militares ao poder.
O país não estaria vendo jovens de 16 a 29 anos apoiando fanaticamente um pseudo salvador da pátria, que diz barbaridades tais como: “O erro da ditadura foi torturar e não matar.” (em discussão com manifestantes); “Pinochet devia ter matado mais gente.” (revista Veja n° 1575); “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí.” (entrevista à revista Playboy); “Não te estupro porque você não merece.” (na Câmara, para uma deputada petista); “Eu não corro esse risco, meus filhos foram muito bem educados…” (resposta à Preta Gil, sobre relacionamento de filho seu com mulher negra); “Parlamentar não deve andar de ônibus”. (jornal O Dia/RJ, em 2013); “A PM devia ter matado 1.000 e não 111 presos.” (sobre o massacre do Carandiru); “Mulher deve ganhar salário menor porque engravida.” (entrevista ao jornal Zero Hora/RS, em 2015).
A insistência destes jovens, nas redes sociais, em martelar chavões escapistas, criados ao longo destes mais de 30 anos de democracia mambembe que temos, uma democracia totalmente edulcorada pelas Organizações Globo, tipo “isto aconteceu porque ela fez alguma coisa!, não justifica nada… torturar e assassinar gente indefesa é crime hediondo!
E mostra bem um certo tipo de juventude que se criou a partir dos anos 90, uma juventude despolitizada, egoísta, fútil, preocupada única e exclusivamente com o seu próprio umbigo e que , de repente, através do novo mundo que se abriu com as redes sociais, decidiu se mostrar a este mundo, palpitando sobre tudo e sobre todos, sem qualquer profundidade, baseada apenas naquilo que ‘sua gente’ lhe disse ou naquilo que sua galera de Whats’App, Facebook, Instagran ou equivalentes lhe repassa (e que ela, sem confirmar ou pesquisar, repassa, para outros grupos).
Impressiona-me, honestamente, a capacidade destes jovens em falar de uma ditadura que não vivenciaram, mas que ‘conhecem’ porque se informaram com ‘sua gente’ ou com seus gurus das redes sociais. Quando eu era jovem, a informação era difundida apenas pelos grandes conglomerados informativos, tipo Associadas ou Organizações Globo… Durante anos o Brasil conviveu com um mantra: “não deu no Jornal Nacional, não é verdade!
Hoje, não! Há toda uma blogosfera em ebulição, onde quem não tem a mente fechada apenas para suas próprias crenças e convicções, pode se basear, para descobrir e entender que uma verdade pode ter muitas faces, e o que qualquer ser humano precisa fazer é, tendo uma posição, respeitar a posição de quem não concorda com ele, e debater, trocar ideias, sem ofensas e sem carimbar a testa do outro com chavões idiotas (tipo ‘você é comunista’, uma ideologia que acabou com a queda do Muro de Berlim, em 1989!)
Nossa democracia ainda é frágil, mambembe como escrevi lá em cima, mas só se consolidará se continuarmos acreditando em democracia. Muitos deputados são corruptos, defendem apenas interesses próprios e de corporações e categorias profissionais que os bancaram, mas somos nós que os elegemos e cabe a nós afastar os corruptos e interesseiros, substituindo-os por quem se dispõe a defender o país e o seu povo, dentro de um ambiente democrático.
O uso da força, o amordaçamento das pessoas, seja pela censura imposta, seja pela monopolização da comunicação, seja pela despolitização da educação, seja pela destruição da memória histórica, só tornará o país cada vez mais dependente das nações que valorizam e respeitam seu próprio povo, e só fará este Brasil viver eternamente em seu berço esplêndido, até que o próprio berço também seja destruído, como já vem acontecendo agora. (fim, por enquanto)