Eu já morava em Brasília e fui a Belo Horizonte para acompanhar um serviço editorial que tinha sido contratado pela minha empresa, para um Programa Nacional que ela estava conduzindo, em uma gráfica/editora mineira. Cheguei já de tarde e fui direto para a gráfica, no Barro Preto. A diretora editorial estava me esperando e, quando me viu adentrando sua sala, percebi que ela ficara pálida, com os olhos bem abertos, quase caindo da cadeira ao se levantar para me receber. Ela se recompôs logo, me encaminhou para uma poltrona na lateral da sua sala, pediu licença por um minuto, saiu e voltou logo, com as primeiras provas de folhetos e cartazetes, parte do material que havíamos contratado.
Francisca era ou estava bem agitada, mas esperou que eu examinasse o material e quando me voltei para ela para fazer algum comentário, ela se levantou e me convidou para ir à gráfica para ver as artes das demais peças. Lá, ela me apresentou o gerente de produção e me deixou aos cuidados dele para uma vistoria técnica na gráfica e nos trabalhos encomendados.
Já era de noite quando voltei à sala de Francisca. Ela me perguntou se havia alguma dúvida ou esclarecimento a ser feito, se deveria modificar alguma coisa, corrigir, acrescentar, eliminar… eu disse que não, que estava tudo de acordo, e ela, então, me ofereceu um uísque, coisa que àquela hora, evidentemente eu não recusaria. Ela serviu para nós dois e daí perguntou, de supetão: “Você não tem a menor ideia de quem eu sou, não?”
Com o copo de uísque a caminho do primeiro gole, eu parei instantaneamente e, em milésimos de segundo, vasculhei minha memória procurando aquele rosto… Realmente, eu não tinha a menor ideia de quem era Francisca! Aliás, eu tinha certeza absoluta de que nunca conhecera alguma Francisca na minha vida.
— Eu e você fomos recolhidos e ficamos juntos num corredor do DOPS ‘séculos atrás’ naquela passeata do Colégio Estadual (O guarda da esquina)…
— Desculpe, Francisca… isto tem séculos mesmo! (na verdade, devia ter uns 15 anos…). E eu acho que estava tão apavorado naquele dia que eu não lembraria de quem estava lá nem no dia seguinte! Acho, aliás, que nunca mais encontrei ninguém, nem no próprio Colégio.
— Eu sei! Você estudava na Serra, mas você se afastou totalmente e desapareceu do Diretório Central e das discussões estudantis, e a gente achou melhor deixar você de lado…
— A gente?
— É… A partir daquele dia, eu mergulhei fundo no movimento… logo eu que não tinha nada a ver com tudo aquilo, não estava nem um pouco preocupada com ditatura, com prisões – não se falava de tortura ainda. Eu fiquei tão arrasada com aqueles nojentos me passando a mão na bunda, no vão das coxas, nos peitos, beijando minha nuca, lambendo minha orelha, encostando o corpo por trás de mim e falando o que iam fazer comigo durante a noite… que me prometi, lá mesmo, que nunca iria permitir que aquilo acontecesse com minhas duas irmãs menores! Quando a gente saiu de lá, levei uma bronca violenta do meu pai, que nem quis saber o que eu tinha passado naquele ‘pouco tempo’ que a gente ficou lá e, no dia seguinte mesmo voltei ao Colégio e fui procurar o pessoal da ‘pesada’. Eu queria matar aquela corja… eu sonhei anos a fio com o dia em que eu ia ter um daqueles filho da p…* na minha frente para eu poder, com um tesourão cego, ir cortando pedacinho a pedacinho do sujeito.
Bom, o fato é que ficamos conversando até o dia seguinte, ela contando sua vida na clandestinidade, contra uma ditadura feroz, e eu tentando justificar a minha ‘covardia’. Quando muito, consegui “provar” que havia retomado minha participação política na faculdade, o que não queria dizer nada diante do que foi a vida dela desde então:
— No início, a Organização me mandou permanecer em Belo Horizonte, participando de reuniões estudantis em vários colégios. O objetivo era conquistar mais estudantes para a causa. E incentivar protestos nas ruas. Não era fácil: a estudantada dos colégios particulares, principalmente mantidos pelas instituições religiosas, era muito alienada, como eu sempre tinha sido. Mas, consegui algumas adesões e, por isso, fui promovida para fazer o mesmo trabalho no Triângulo Mineiro.
— Abandonou o colégio? Saiu de casa?
— Sim… claro! Meu pai era um cara de posses, industrial, não se envolvia com política, mas achava que os militares estavam combatendo os comunistas, e isso era bom. Então, fui para Uberlândia, fiquei um tempo lá e, depois, fui para o norte do Paraná, sempre com o mesmo trabalho: trazer estudantes para o movimento e agitar.
O marido de Francisca chegou, ela nos apresentou, ele falou que ela precisava jantar, se nós não preferíamos ir para casa, ele faria um jantarzinho… E nós fomos. A esta altura, meia garrafa de uísque já tinha ido…! Em casa, muito perto, ela me apresentou os dois cães e a mãe – o pai já havia morrido – contei um pouco sobre minha vida em Brasília, meu trabalho numa estatal sob um governo ditatorial ainda (Geisel), sobre minhas filhas, enquanto Pier Paolo, o marido, fazia um nhoque ao molho de tomate. (continua)