Eu não sou uma pessoa sentimental. Sensível sim, mas uma sensibilidade tão amedrontadora na infância e juventude, por causa da timidez crônica, que, para sobreviver, tive que escondê-la no fundo da alma, passando anos e anos desprezando qualquer possibilidade de chorar ou de demonstrar, para e perante os outros, algum sentimento por alguma coisa.
Minhas filhas sentiram bem o que é esta sensação de você estar sempre distante, mesmo estando ali ao lado. Quando, então, efetivamente foram para longe, esta sensação ficou mais presente… e não havia carta, telefone, e nem há, hoje, email, Whats’App, Facebook, Instagram que altere isto. Não adianta trocar vídeos musicais, fotos familiares, emoticons e corações pulsantes, que os meios eletrônicos não substituem um olhar carinhoso, um abraço apertado, um beijo estalado, uma risadaria em comum…
É claro que meu cascudo coração se enternece e bambeia ao saber que as filhas mais velhas, por si e com apoio direto da mãe, venceram na vida no país mais poderoso do mundo, e que a caçula está construindo sua vida e casas noutro país. É claro que me emocionam fotos e vídeos de minha neta protagonizando a Noviça Rebelde num teatro em Washington, ou o neto mais velho esquiando em montanhas geladas, ou o mais novo lendo uma pauta e tocando ukelelê, ou o do meio se tornando o Pelé louro dos States… O fato concreto é que eu continuo longe!
Na infância, a sensibilidade ainda não estava ferreamente controlada e aflorou algumas vezes – quando minha gata Kalu desapareceu, quando vi uma mulher e três meninas ainda pequenas, roupas sujas e rasgadas, uma no colo (a miséria ainda não era tão presente nas grandes cidades brasileiras), sendo expulsas da calçada em frente às Lojas Brasileiras, porque a visão delas incomodava a clientela, ou quando assisti, no Cine Metrópole, em Beagá, “A Dama e o Vagabundo”, um desenho animado da Disney. Mesmo assim, se tivesse gente perto, eu já tentava esconder as lágrimas ou fingir que um cisco tinha caído no ôlho…
Na juventude, o controle se tornou bem mais rígido, formando uma casca super protetora. Como já escrevi aqui, tornei-me absolutamente cético e aprendi a manejar a ironia. Quantas e quantas vezes no ginásio e na faculdade abusei da crítica sutil, da imagem criada de leitor compulsivo de livros (que eu realmente era) e da imaginação fantasiosa (que eu realmente tinha), para “brincar” com colegas e amigos e, principalmente, adultos próximos ou distantes, que se consideravam (e alardeavam ser) detentores de verdades absolutas. Poucos percebiam a gozação mas, sempre, elogiavam minhas “maturidade” e “inteligência”.
No correr da vida, assim como os óculos, ceticismo e ironia se consolidaram como essenciais à minha personalidade. Nos últimos 50 anos, acho que chorei apenas três ou quatro vezes. Duas estão nítidas na memória: uma, quando não consegui embarcar para assistir a formatura de minha segunda filha no Rio de Janeiro; com o bilhete na mão, passei o dia inteiro no aeroporto tentando embarcar e só consegui fazê-lo no dia seguinte, depois da solenidade. O aeroporto estava cheio e viu aquele senhor de terno, gravata e maleta na mão, impotente, chorando de raiva e frustração. Outra, no avião de volta de Marília, trazendo o caixãozinho com Jordana, morta no dia anterior; Lúcia estava desesperada e eu segurei o choro a noite toda, no velório a dois que fizemos em Bauru, aguardando a chegada do avião no dia seguinte; embarcamos e, pouco depois, ela adormeceu no meu ombro, exausta. E eu desabei, mas piloto e copiloto fingiram que não viam.
Agora, que passei da idade de mentir para mim mesmo, apesar de ainda manter parte da casca formada há tantos anos, o que continua limitando minha sensibilidade, vejo meu sentimentalismo aflorar de novo, às vezes por coisas bobas, situações vividas no cotidiano de um aposentado com limitações visuais (perdoem-me, mas a ironia continua forte na minha personalidade, até mesmo em relação a mim… semi-cego seria politicamente incorreto!), que sai pouco de casa e passa boa parte do tempo sentado à frente do computador, lendo sobre política e catando dígitos para compor este blog.
Minha mãe, quase centenária, mas imensamente lúcida, reclama disto. Diz ela que, à medida que foi envelhecendo, foi se tornando cada vez mais sentimental, a ponto de não jogar fora bugigangas e badulaques sem qualquer serventia, apenas porque lembram alguma coisa feliz do passado. E, realmente, há muita coisa nos guardados dela! Pude perceber isto agora, quando ela se mudou para minha casa, carregando caixas e mais caixas que não sei onde colocar. O sentimentalismo é tanto que, quando falei que ia levar uma mesa de jantar que tem uns 50 anos e que está “guardada” no mezanino da minha casa, para a cozinha caipira, substituindo uma mesa que minha ex-mulher levou para a casa dela, ela se irritou e não admitiu de jeito nenhum, porque a faxineira “ia jogar água nos pés da mesa que a estragaria…!”
Acho que a proximidade da morte torna as pessoas ainda mais apegadas às coisas materiais da vida, como se dissessem para si mesmas: minha mesa está ali, o cachimbo que meu marido tentou fumar um dia está aqui comigo, a toalha que ganhei da minha mãe quando casei eu ainda posso usar…! Ou seja, eu estou aqui! (É claro que existem aqueles que se apegam a Deus, tentando garantir seu lugar no Céu!). Só que eu não me acho próximo da morte! Como eu escrevi neste blog (Jornada de um míope para a escuridão I e II), eu acho que a vida foi, é e continuará sendo bonita…
Mas, confesso, me incomoda o fato de me tornar sentimental de novo. Estou escrevendo isto porque acabei de cumprir uma decisão que tomei esta semana e que eu vinha adiando há mais de ano: mandei cortar as grandes árvores que ficavam na divisa da minha chácara com a rua, árvores que tinham me encantado quando vim conhecer a chácara e me ajudaram a decidir compra-la há mais de 15 anos…
Disse-me o cara que me vendeu a chácara que são sibipirunas… Não tenho certeza, eu gosto da natureza, mas não me interesso por nomes, tipos, biomas e coisas tais. O fato concreto é que as 13 árvores – uma com uns 10 metros de altura – que faziam guarda à entrada da minha Chalueo II, estavam bichadas já há algum tempo e corriam o risco de cair sobre a rua, sobre a rede elétrica, sobre outras árvores que plantamos nestes 15 anos.
Uma delas já havia sido quebrada ao meio pela queda de um raio há mais de três ano. Renasceu, estava cheia de galhos novamente… outras duas, eu já tinha sido obrigado a cortar porque estavam apodrecendo por dentro. Ou seja: há tempos eu estou sendo aconselhado a cortar as onze árvores, incluindo a que renasceu. E reluto.
Uma das coisas que costumo fazer desde que, já aposentado, fiquei sozinho em casa, é sentar na varanda e, enquanto beberico meu uísque diário, fico pensando na vida e observando e escutando a natureza em volta. Minha casa é vizinha do Parque Nacional de Brasília e, é claro, pássaros que lá vivem costumam fazer seus passeios pelas terras em volta. Tucanos, pica-paus, sabiás, pinhés, joões-de-barro, curicacas costumam pousar em minha chácara, além de colibris, pintassilgos, canários e dezenas de outros passarinhos, inclusive pardais, que adoram fazer ninhos no madeirame da varanda.
Picapaus, tucanos e joões de barro, há muitos anos, frequentavam e construíam seus ninhos nas sibipirunas. Há anos que escuto, daqui de casa, há uns 80 metros das árvores, o toc toc toc dos pica-paus em busca de vermes e cupins no miolo delas… Há anos que vejo bem construídas casas de joões de barro, algumas com dois andares, nos entroncamentos dos galhos. Há anos que vejo maritacas lá fazerem uma parada antes de atacarem as mangueiras que tenho. Há anos que assisto bandos de tucanos pararem nelas antes de voarem para os abacateiros da minha vizinha.
Não verei mais nada disso… mandei cortar minhas árvores! Um caminhão veio busca-las e fez cinco viagens para levá-las daqui. Estou livre de acidentes, claro, mas estou imensamente triste, chorando escondido mais uma vez. No dia seguinte à retirada dos tocos das árvores, fomos dar uma olhada no local, que ficou cheio de gravetos, folhas, cascas e cupinzeiros destruídos. Enquanto estivemos lá, uma joana de barro corria de um lado para o outro entre estes restos. Não fugia da gente, saltitava de um lado para o outro… Meu irmão disse que ela caçava cupins, eu tenho certeza que ela procurava sua casa!