Infeliz e inapelavelmente, minha miopia não estacionou, continuou avançando. E me causou situações embaraçosas e ridículas, algumas até engraçadas, ao longo da vida pessoal e profissional. Como quando conheci minha primeira mulher, viajando de ônibus para o sul de Minas. Passamos boa parte da noite conversando e marcamos de nos encontrar de novo no boliche de Itajubá, o point jovem da cidade. Cheguei um pouco antes da hora marcada (como sempre, eu precisava sentir o ambiente primeiro) e logo vi os cabelos arruivados de Marília numa mesinha tomando um sorvete.
Cheguei todo animado (ela estava lá, ora!), sentei sem pedir licença e, para disfarçar a timidez, fui logo perguntando: “E aí… dormiu um pouco?” Não era Marília… era Meire, sua irmã mais velha, e eu não percebi!
Ou como uma descoberta inesperada na minha época de esbórnia, entre os dois casamentos: uma amiga, ex-colega de trabalho, foi me visitar em casa e nos sentamos num sofá bem confortável que eu tinha.
A certa altura, rindo de uma história que ela contara, eu tirei os óculos para limpar as lágrimas e ela danou a gargalhar. Ainda com os óculos na mão, eu olhei-a interrogativamente e ela, ainda rindo, explicou: “muitas amigas nossas em comum me falaram deste sofá tão agradável e acolhedor, e me alertaram: muito confortável o sofá, mas cuidado quando ele tira os óculos…!”
Ou como na inauguração do Armazém Frigorífico de Canoas, no Rio Grande do Sul, uma solenidade com a augusta presença do presidente Geisel, o prussiano general de plantão. Como assessor de comunicação da empresa, eu fui o responsável pelo organização da solenidade (passei um mês indo e voltando a Porto Alegre, para cuidar dos detalhes e acompanhar o batalhão precursor da Presidência da República). Umas duas horas antes da inauguração, eu cheguei ao frigorífico para checar tudo e, não sei como, deixei meus óculos no carro da Companhia, que voltara ao hotel para pegar os diretores.
Pouco depois da minha chegada, apareceu um taxi no portão e um senhor de cabelos brancos bem curtos e terno preto disse para os porteiros que estava ali para verificar a segurança do evento. Era um coronel do SNI (Serviço Nacional de Informações), que estivera comigo umas duas vezes, verificando os preparativos. Nas duas vezes, ele estava de uniforme e, sem óculos, de certa distância, não o reconheci e mandei barra-lo. Quase fui preso por desacato à autoridade!
E teve o lance do avião, uma loucura que fiz nos céus de Mato Grosso do Sul. Eu contratara um profissional para fotografar e filmar um conjunto de silos que a minha empresa havia construído naquele Estado. A gente chegou em Campo Grande, pegou o carro da Companhia e foi passando pelas unidades, fotografando e filmando de baixo: Campo Grande, Sidrolândia, Rio Brilhante, Dourados, Maracaju, Ponta Porã…
Aí a gente alugou um monomotor e veio fotografando e filmando as unidades do alto. O processo era simples, mas meio louco, só um profissional amante do que fazia, como o Arthur, fazia aquilo: com a porta aberta do avião, eu o segurava pelas pernas e ele punha o corpo para fora e fazia filmagem primeiro e, depois, tirava as fotos. Sobrevoando Dourados, que era o maior silo, eu decidi repetir a loucura dele, só que tive de tirar os óculos. Repeti, mas as imagens saíram uma m…*! Tempos depois, eu mesmo tive que improvisar: repeti a operação do Arthur no Mato Grosso, só que amarrei os óculos na cabeça, e consegui tirar, pelo menos, a foto de uma unidade…
Infeliz e inapelavelmente, a idade continuou avançando. E, a certa altura da vida, além da miopia, apareceu a catarata. Depois de refugar algumas vezes (quem sofre das vistas sabe que elas são o nosso ponto mais fraco… a gente tem medo até mesmo de pingar colírio!). Mas, apelei para os deuses, e fiz! E tive a imensa satisfação de verificar que a miopia fora reduzida: de 09 para 4,5 graus no olho direito e de 5,5 para 0 graus no olho esquerdo! Como dizia uma ex-cunhada, sangue de Jesus tem poder!
Um poder que durou pouco: menos de dois anos depois, o zerado olho esquerdo sofreu um pequeno descolamento de retina: de repente, minha visão foi tomada por uma teia de aranha esquisita, que me levou correndo ao meu oftalmologista. Uma aplicação simples de laser no olho e ele voltou ao normal mas, infelizmente, ele, meu oftalmologista, não me explicou que fora um descolamento de retina, e que este tipo de problema precisa ser tratado imediatamente…!
Muitos meses depois, a teia de aranha reapareceu, eu liguei para a clínica, ele estava viajando e eu marquei uma consulta normal com outro médico para uma semana depois. O outro médico examinou, achou que “podia ser retina” e pediu alguns exames “para confirmar”, que levaram mais uma semana para serem realizados e ficarem prontos. Ou seja: quando levei os resultados ao meu oftalmologista, ele balançou a cabeça e disse que eu tinha de ser operado imediatamente, mesmo assim sem muitas chances de recuperar uma percentagem razoável de visão. Cinco operações depois, com um silicone colado na retina, para ela não despregar de vez, meu olho esquerdo está praticamente inútil, com entre 05 e 10% de visão. Parei de dirigir à noite, parei de ler meus livros, parei de jogar baralho… Só não parei de ler e escrever porque o computador permite aumentar as letras!
Apesar de eu ter poucos motivos para acreditar na raça humana que, depois de tantos e tantos anos de evolução física e mental, continua com uma capacidade infinita de se auto destruir, em nome de deuses, de riquezas ou de poderes, o fato é que o ser humano se renova e se adapta a cada porrada da vida e, no meu caso, a ausência de um olho revitalizou o outro, que continuou míope, mas capaz de manter minhas capacidades de leitura, de digitação e até de direção do carro, mesmo que com algumas limitações. Consegui até renovar minha carteira de motorista por três anos… sem qualquer mutreta!
Já estava bem adaptado com meu único olho, lendo (no kindle) um livro sobre forças quânticas, a nova onda que mistura física com filosofia e religião, quando veio nova porrada: meu razoável olho direito, com mais de 60 anos de miopia e sobrecarregado pelo esforço dos últimos meses, sofreu um derrame. Lá fui eu correndo para o oftalmologista de novo (felizmente, ele só ia viajar no dia seguinte). “Isto não é tão grave, Leo, mas vai exigir um procedimento: pingue este colírio esta semana e, dependendo do resultado, vamos dar uma, duas ou três injeções no olho… Não se preocupe, não dói nadinha!”
A primeira já foi e não doeu nada mesmo. Mas, até agora, continuo com um véu diáfano na visão direita (um pouco menos diáfano, mas ainda véu), que não me impede de catar dígitos para escrever este texto, mas me proíbe de dirigir o carro e de andar sem bengala pela chácara em que moro. Forças quânticas, a pedido de um primo-irmão, cuidador de minha mãe, e de São Judas Tadeu, a pedido dela, estão batalhando por mim. Mas, confesso, do sangue de Jesus Cristo eu desisti.
No início desta jornada, eu disse da inevitabilidade de meus problemas de visão, no entendimento de meu pai, médico e também míope desde jovem. Outros problemas de visão, alguns bem graves, ele também teve ao longo da vida. Mas, exerceu sua profissão por 60 anos. Parou quando a visão começou a impedi-lo de conversar olhando detidamente seus pacientes, a melhor forma de diagnosticar os males que os afligiam. Assim como parou de fazer duas outras coisas que amava: ler livros e jogar xadrez.
Quando a escuridão baixou de vez sobre a visão de meu pai, ele desistiu da vida. E morreu logo depois. Mas ele acreditava em vida após a morte. Eu, não! Eu vou tratar de aprender braile ou, melhor, vou procurar uma companheira que seja boa digitadora… Porque a vida foi bonita, é bonita e continuará sendo bonita… até que meus olhos se fechem definitivamente!