Eu nunca tive um barbeiro para chamar de meu. Nos últimos anos, com a calvície se acentuando, minha ex-mulher assumiu o papel de barbeira e eu passei um bom tempo sem botar os pés numa barbearia. De um ano para cá, como deixei a barba crescer – para compensar a carequice e a solteirice – voltei a precisar de um profissional e, de tempos em tempos, vou a uma tradicional barbearia na Asa Norte, do Onofre.
São dois salões grandes, com cerca de trinta barbeiros à disposição de quem chega. O sistema, se entendi bem numa conversa com um deles há algum tempo, é terceirizado: o dono (não sei se ainda é o Onofre ou já é algum herdeiro) tem a tradição, o local e as cadeiras, e o barbeiro tem os instrumentos, faz o trabalho e paga um percentual para o dono, o que, me parece, implica numa rotatividade impressionante.
O fato é que nunca consegui aparar a barba com o mesmo barbeiro e que, a cada vez, os barbeiros à disposição são mais jovens. Desta vez, o que me atendeu tinha 20 anos! Com seu rosto imberbe, sorrindo muito, se apresentou, Lucas, me cumprimentou e me indicou a cadeira dele. Perguntou o que ia ser… eu disse: barba, máquina 02, e ele nem esperou em me sentar e abriu fogo (barbeiros e taxistas adoram conversar e opinar): “Então, o que achou da votação do Congresso inocentando o Aécio?”
Eu já escrevi aqui no blog que não gosto de discutir política em público, mas o barbeiro era tão jovem e estava tão afoito para conversar e dar sua opinião que não resisti à provocação: “Aecim é um ladrão, assim como todo este governo que deu um golpe para roubar ainda mais e assim como a maioria destes senadores e deputados que estão aí, não é mesmo?”
Ele retrucou: “Também acho… nenhum país será poderoso se não adotar o liberalismo econômico.” Me assustei: “Como é que é? Um governo que faz reformas neoliberais e que quer privatizar tudo, até a Amazônia, não é liberal? E o que é que o liberalismo econômico tem a ver com políticos e suas ladroagens?” E ele, passando a máquina 02 em minha barba: “Tudo! Enquanto o Brasil for dominado pelo Estado, o paternalismo será prioritário… O Brasil não progredirá enquanto não se entregar totalmente ao mercado…”
E eu, embasbacado, retruquei: “Cara, quantos anos você tem?” “20 anos”, respondeu ele. “E de onde você tira esta conclusão?” “Eu estudo Engenharia Civil, mas quero fazer pós-graduação em Economia…” “ E por quê você não está cursando Economia, já que você se amarra nesta área?” “Porque eu usei o PROUNI para entrar na faculdade, já que nem eu nem meus pais tínhamos condições de pagar o curso superior para mim… e o curso que eu consegui foi de Engenharia Civil. Economia é um sonho, se bem que engenheiros civis são muito bem recebidos em bancos que operam com crédito imobiliário…”
“Isto significa – continuei provocando – que você vai votar no Dória em 2018… “De jeito nenhum…! Até que ele pareceu ser um cara liberal, com realizações muito boas no início. Mas, agora, já foi atacado pela mosca azul e esqueceu todo o liberalismo que é a salvação do Brasil…!”
“O que você chama de realizações muito boas? Acabar com a Cracolândia? Que não acabou? Obrigar o atendimento noturno dos postos de saúde, que aumentou as filas nos hospitais estaduais e municipais? Impingir a gororoba alimentar que nem um secretário dele conseguiu comer, no sistema público escolar? Perdoe-me, Lucas, o que você entende por liberalismo?”
“É o direito das pessoas optarem, cara…! Se eu quero vencer na vida, eu vou fazer isto de qualquer jeito! Não importa o que diz a Constituição, não importa o que meus pais disseram que é ético e honesto, não importa as pessoas que estão na frente… se estão atrapalhando, eu piso nelas… o que importa é alcançar o fim almejado: o sucesso!”
Há uma técnica jornalística, que eu aprendi quando ainda era estagiário: aproveitar o entusiasmo das pessoas quando falam de coisas em que acreditam, para confrontá-las com suas próprias atitudes… e eu argumentei: “Pô, cara! Quer dizer que você está se aproveitando do PROUNI para subir na vida mas, se isto acontecer, você subir na vida, vai ser um crítico do PROUNI porque o governo não pode interferir no mercado, inclusive no da educação…?”
Ele ficou mudo por um tempo – e eu também, já que ele estava, com a tesoura, aparando meus bigodes – e acabou argumentando: “E por que não? Eu abro meu caminho e aproveito as oportunidades que me são oferecidas, mas quanto menos gente tiver para concorrer comigo, melhor…! Não é óbvio?”
“Cara… – disse eu, outra técnica jornalística: mostrar-se admirado pelas palavras ‘sábias’ do interlocutor – confesso que a ideia me choca um pouco, mas você tem razão: o mais importante é a gente mesmo, né?” E ele: “É isso aí, cara…! Quem não tem competência que não se estabeleça. O mundo é dos espertos. A maioria é ralé… tem que comer capim!”
Resolvi espicaçar mais: “Cara… O que você está fazendo aqui? Por quê não migrou para os Estados Unidos?” E ele, enfático: “Para quê? Os Estados Unidos não é um país liberal… Elegeu o Trump agora, que podia significar uma esperança… mas não é consistente, é mais uma figura da mídia que do mercado…” Fingindo estupefação (o que, realmente, eu estava sentindo), perguntei: “Em qual país você gostaria de viver, então?” “Qualquer país que adote o liberalismo como política de Estado…” “Quais?” perguntei. “Hong Kong…” E não lembrou de mais nenhum outro…!
Resumindo: Lucas, 20 anos e já casado (!!!), temporariamente barbeiro de profissão e estudante de Engenharia Civil que pretende fazer pós graduação em Economia, tem certeza que Hong Kong é o país ideal para se viver, porque é onde o governo aplica o liberalismo econômico em sua plenitude.
Quando voltei para casa, fui pesquisar na Internet e confirmei que Hong Kong é um pedaço da China, uma península e algumas ilhas em volta, que foi protetorado inglês desde a 1ª Guerra do Ópio, meados do século XIX, retornando ao controle da China em 1997, mas com liberalidades em seus sistemas jurídico, econômico e político. Ou seja: a toda poderosa China, segunda economia do mundo (por enquanto), mantém seu sistema político centralizado, com um controle comunista absoluto, mas abre canais para o capitalismo selvagem, como o permitido para Hong Kong. Dentro da hipocrisia política mundial, todo o mundo capitalista aceita, bate palmas e se regozija pelo imenso mercado chinês aberto para as bugigangas ocidentais.
Mais: dos cerca de 07 milhões de habitantes de Hong Kong, 96% são chineses e, segundo a Wikipédia, “o antigo protetorado possui a economia menos restrita do mundo, basicamente livre de taxas, sendo a 10ª maior entidade de comércio e o 11º maior centro bancário mundial.” Considerado por vários anos como maior e mais importante centro financeiro do mundo, Hong Kong tem, também, o maior índice de desigualdade entre ricos e pobres dentre as nações desenvolvidas do planeta.
Ainda a Wikipédia, “20% dos mais pobres de Hong Kong dividem apenas 6% da receita total da ilha, ao passo que os ricos detêm 43% da fatia. A renda da base da pirâmide cresceu 2%, enquanto a dos mais ricos subiu 10% e a da classe média alta 14%”. E, conforme o instituto de pesquisa Ipsos, a disparidade entre ricos e pobres criou uma “divisão digital”, que mostra que a educação local e o acesso à tecnologia também estão ao alcance apenas dos privilegiados…”
Fiquei imaginando o imberbe Lucas e sua jovem esposa andando pelas ruas e morros de Hong Kong à procura de emprego que os levasse aos píncaros da glória capitalista. Não duvido que ele chegue lá, dadas as convicções demonstradas e enfatizadas em uma simples conversa com um freguês idoso da barbearia.
E senti uma enorme pena de jovens como ele, que acham que num mundo de 7,5 bilhões de almas, apenas 75 milhões, aquele 1% que deu origem ao Occupy Wall Street (que resultou, infelizmente, em Trump), merecem gozar a vida em sua plenitude. Se a geração de hoje está sendo criada pensando deste jeito, acho que minha geração devia pedir desculpas aos deuses e rezar por um novo Big Bang…