Tem algo de muito podre num país em que num único mês um juiz de primeira instância recebe mais de 400 mil reais… E outros 83 companheiros seus recebem mais de 100 mil cada um! Tem algo profundamente errado num país em que os juízes de um tribunal de contas passam, em um ano, 60 a 90 dias viajando “a serviço” pelo Exterior… E em que outro, supremo, tem compulsão por conceder habeas corpus para aprisionados de reputação pouco ilibada, mas de sangue nobre! Tem qualquer coisa totalmente injusta quando um procurador da República manda investigar banheiros supostamente unissex de uma faculdade pública, outro aproveita a cobertura favorável da mídia para se “vender” ao mercado como conferencista ou como futuro consultor quando, brevemente, se “aposentar” do serviço público e outros recebem um acréscimo de R$8 mil e caquerada/mês ao salário, só de diárias…
Ninguém sabe, ao certo, quando Shakespeare, o bardo inglês, escreveu Hamlet, que é sua tragédia mais longa e, ao que tudo indica, a mais popular enquanto viveu… e até hoje. Hamlet é um príncipe que é instigado a vingar a morte do pai, morto pelo tio, que se casara com a viúva, mãe dele, e se apossara do trono da Dinamarca.
Numa das cenas do primeiro ato, conversando com um amigo e um guarda real sobre a situação do reino, o fantasma de seu pai aparece e tenta convencer Hamlet a vinga-lo. Quando eles saem de cena, Marcelo, o guarda real exclama: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca!”, numa alusão ao Reino e ao fantasma… A peça explora temas como traição, vingança, incesto, corrupção e moralidade e, como toda grande tragédia, acaba com a morte de todos os personagens principais, num aviso claro do autor: podres em vida merecem o apodrecimento eterno.
O que, evidentemente, nunca vai acontecer na apodrecida republiqueta do Brasil. Por quê? Imaginemos uma peça teatral em um ato, com os personagens citados no primeiro parágrafo:
CENA I (a cortina sobe mostrando uma sala de reunião de um resort de luxo em Porto Seguro, Bahia, onde juízes do país inteiro cercam uma das estrelas da festa, um juiz que conseguira, via porteira jurídica, receber a bagatela de 500 mil reais em um único mês. Todos queriam saber o mecanismo jurídico usado por Sua Excelência para tal proeza (mais do que justa, claro!, mas uma proeza de qualquer modo!). Daí, o diálogo:
— Mestre? Que alínea, item, artigo… V.Exa. utilizou para alcançar tal glória? Meio milhão num mês nem nosso Septão Gigil do Tachã consegue…
— Não há segredo nenhum, meu preclaro… Nós vivemos num país em que as leis, desde a República, são feitas por nós, os escolhidos, vez que os legisladores não têm tempo para leis, já que têm muito que se preocupar com sua própria manutenção no poder. Basta uma colega nossa ter um direito reconhecido e receber um atrasado de 29 mil reais, para abrir a porteira, formatando o nosso holerite pelo fator JR = (ptab+pdca) x (bc+gd) – (di,l)…
— Como é que é, Excelência…? JR… o quê?
— Justa Reparação ou Remuneração, como queiram, (JR) ∑ (é o somatório) de (porteira aberta + penduricalhos autorizados) x (branco + graduação em direito) – (descontos injustos, mas legais), ou seja: R$ 415.693,02 (JR) equivale a {R$29.000,00 (ptab) + R$14.028,79 (pdca)} x {5 (bc) + 6,6905 (gd)} – 87.335,77 (di,l). Evidentemente, tem que abrir a porteira primeiro, mas isto o Conselho Supremo costuma fazer a todo momento… e aí, é só aplicar a equação!
Neste momento, um Magistrado Supremo envolto em sua acolchoada capa preta adentra o recinto e é instado a se pronunciar sobre o poder da equação, e não titubeia:
— O condomínio aumenta… o IPTU aumenta… a escola aumenta… a gasolina aumenta… supermercado aumenta… e o salário do juiz não aumenta? E reivindicar é feio?
Sob aplausos, a equação é escrita num quadro negro e furiosamente copiada por todos os presentes, enquanto a cortina desce sobre a primeira cena.
CENA II (a cortina reabre mostrando a amurada e um pedaço do tombadilho onde, refestelados em duas espreguiçadeiras separadas por uma mesinha com uma garrafa de Blue Label, dois copos servidos com gelo e salgadinhos de vários tipos, dois senhores de bermuda, camisa polo e óculos escuros, conversam):
— Pois é o que eu lhe digo, meu amigo: 12 dias na Holanda e não foi suficiente para fazer tudo o que se precisava…
— Você estava num seminário da ONU, pelo que ouvi dizer…
— Sim. Eu vim para o seminário, mas ele foi vapt vupt… durou só um dia! E eu tinha trazido minha senhôra, que é extremamente curiosa, quis conhecer até as vitrtinas daquelas ruas do bairro das prostitutas, o Red Light District, que é uma coisa… como direi? De derrubar o queixo! Mas, claro, não a acompanhei em tudo… aproveitei para conhecer os corredores da Justiça holandesa, que tem coisas muito avançadas. Fiquei extasiado, também, com a arquitetura da Corte Internacional em Haia, por exemplo…
— Pois eu te confesso, meu amigo, que pretendo dar uma parada nestas conferências e congressos internacionais. Estou cansado deste lufa-lufa de aeroporto, avião, hotel, restaurante, ainda mais carregando minha mulher, que só quer saber de comprar, comprar, comprar… É neto, é sobrinha, é amiga que não acaba mais! Nos últimos dois anos e meio, meu caro, foram 171 dias no Exterior, além daquelas viagens horríveis para o Piauí, Espírito Santo, Rondônia, que não tem mais nada interessante para eu ver… Foi uma sorte agora eu ter parado em Lisboa e descobrir este transatlântico viajando para o Rio e, ainda por cima, topar com meu nobre amigo aqui…
As cortinas começam a baixar lentamente quando o auto-falante do navio anuncia: ‘Senhores e senhores, não percam nossa promoção de setembro próximo: uma viajem inesquecível para a China…’ e antes que elas se fechem de vez, ouve-se a voz do que se diz enfarado de viagens:
— Olha aí, meu amigo, eu não conheço a China ainda! Será que não tem nenhum congresso jurídico por lá? Aquela Justiça chinesa que fuzila os corruptos e ainda manda a familia pagar a bala deve ser algo interessantíssimo!
CENA III (a cortina se abre lentamente, mostrando a mesa de um restaurante ocupada por três homens engravatados, com os paletós nos encostos das cadeiras, um deles com a manga da camisa arregaçada, o garçon abrindo uma garrafa de vinho tinto Bernio Vino Rosso; a cortina está toalmente aberta no momento que o personagem de manga arregaçada levanta sua taça e brinda:
— Ao novo poder!
— Ao nosso poder!
— Qual é, caras? – o terceiro personagem recua sua taça e, com cara de poucos amigos, continua, fixando-se no que levantara o brinde: — Só porque você dá entrevista uma vez por semana para a Globo – e olhando para o outro – e você faz palestras para grandes grupos financeiros, já estão se achando os reis da cocada preta?
— De jeito nenhum, meu caro… A imprensa é muito importante neste processo para nos conectar com o povo, mas muito mais importante é o que nós estamos fazendo pelo país! E o povo reconhece isto… olhem aí nosso preclaro juiz, mesmo recusando sua candidatura a presidente, já está aparecendo nas pesquisas e, logo, estará pau a pau com o apendeuta. E nossa operação é que o colocou aí!
— Não há nada que me impeça de dar palestras para as quais sou convidado, meu caro. E não estou ganhando nada com isto… é tudo para um ‘fundo contra a corrupção’! E há cada vez mais empresários querendo conhecer nossa brilhante operação, nossos métodos de trabalho, nosso jeito de emparedar os safados, nossa interpreação das leis…
— É como eu estava dizendo, meu caro colega, a imprensa foi fundamental para apoiar, idealizar e “vender” a justeza de nossa causa, mas nosso poder agora já está consolidado. Eu posso hoje, com absoluta tranquilidade, largar a operação e montar uma consultoria de compliance ou até de caça às bruxas que vai chover cliente na minha horta…!
— Mas… e a quantidade de empresas fechadas ou em processo de liquidação? E o desemprego crescente que a operação de vocês tem provocado? A desnacionalização de setores importantes…?
— Besteira! Você leu Macunaíma, meu caro? Ele dizia que “pouca saúde, muita saúva os males do Brasil são!” Nós estamos acabando com a saúva de hoje, a corrupção, e, assumindo o poder de fato, logo logo o brasileiro estará vendendo saúde…! Ou, melhor, até a saúde…!
E, gargalhando, ele levanta outro brinde enquanto a cortina se fecha lentamente, sob os aplausos entusiasmados da platéia de jovens do MBL e congêneres.
E eu, que não me chamo William, nem sou bardo, vou parando por aqui. Afinal de contas, tragédias brasileiras costumam acabar muito bem, ao som
final do plim plim. E muito mal apenas para os plebeus, no dia a dia da vida real, plebeus aliás, que não conseguem nem entrar num teatro para assistir tantas cenas edificantes desta vida também real.