E a noite chega…
Com a caçula de volta aos encantos de Popocatépetl e Iztaccihuatl , os vulcões apaixonados, volto à varanda. O anoitecer sempre trouxe um quê de angústia à minha alma, uma dúvida não resolvida ao longo de, pelo menos, 50 anos, que se amplia com a noite: a culpa por eu não ter me tornado um poeta, como eu gostaria de ter sido, foi da sociedade machista e preconceituosa em que nasci e vivi até hoje? Ou foi meu próprio medo de transgredir esta sociedade, me moldando à sua vontade por toda a minha vida?
Eu não tenho certeza absoluta ainda, mas beirando os 70 anos e, sozinho, vendo a noite chegar na minha varanda, com a imensa lua amarelada se assenhoreando do horizonte ainda azulado, eu tendo a assumir a culpa da minha covardia: a alma de poeta que eu sempre tive se omitiu atrás das conveniências da sociedade, da classe média a qual sempre pertenci, que só admira e valoriza quem “vence” na vida, um “vencer” que significa ‘olhar de cima’, ter carro do ano, ter casa com piscina, churrasqueira e um barco no píer, usar só roupas de grife, viajar uma vez por ano a Miami para comprar “frivolidades mais em conta” ou para a Europa, para “ter um banho de civilização…”
É duro reconhecer que abandonei, num passado longínquo, minh’alma de poeta! Eu escrevi poesias quando aprendia a ler e escrever… Uma poesia minha, quando tinha 7/8 anos (alguma coisa falando de jarro e flores, que devia ser tão infantil ou imbecil que nem minha mãe guardou…) foi publicada no órgão oficial da cidade de Brazópolis nos idos de 1950 (muito provavelmente porque o redator, editor e diretor do jornal fosse meu padrinho de crisma…), sob o argumento de que era um garoto de 7/8 anos, neto da terra, que já escrevia poesias…!
Outra poesia minha, revolucionária – ‘Juntem-se a nós’ – circulou nos meios estudantis nos primeiros tempos do golpe militar, incentivando colegas a picharem muros e paredes e a gritarem ‘Abaixo a Ditadura’… e uma peça de teatro, escrita a duas mãos com o amigo Wandeir, – ‘Miríades ou De como um macaco quebrou a cabeça de outro e passou a usar capacete’ – permanece inédita até hoje porque foi escrita em versos dodecassílabos (nem Zé Mayer se arriscou a encená-la!).
Acho que a solidão tem seus encantos… No meu caso, está me devolvendo minh’alma de poeta… A situação do país e da sociedade brasileira hoje, me recorda os primórdios dos anos 50 e dos anos 60, quando a elite de sempre, acompanhada bovinamente pela classe média, derrubou governos legítimos em nome do combate ao ‘mar de lama’ ou ao comunismo ou à corrupção… (qualquer desculpa é válida quando o que interessa é retomar o poder!)
Mas, ao contrário de outros tempos, não tenho mais vontade de berrar que ‘está tudo errado’, ‘que o Brasil não merece tanta hipocrisia e podridão’, que ‘é preciso agitar as massas e derrubar os poderes constituídos’… Prefiro contemplar a imensa lua subindo pela semi-escuridão da noite, prefiro Milton cantando Chico e Gil: “Como beber dessa bebida amarga?/Tragar a dor, engolir a labuta?/Mesmo calada a boca, resta o peito/Silêncio na cidade não se escuta/De que me vale ser filho da santa?/Melhor seria ser filho da outra/Outra realidade menos morta/Tanta mentira tanta força bruta”//
Já não era sem tempo… Meu ciclo de vida está quase completo e só falta eu me aceitar exatamente como aquilo que, no seu começo e em todo o percurso até aqui, para sobreviver, eu me neguei a ser, poeta e romancista, mesmo que não edite uma linha sequer do que tenho escrito ou ainda pretendo escrever. A sociedade continua preconceituosa, mesquinha, cada ser humano, com as honrosas exceções de sempre, vivendo apenas em função de seu próprio umbigo, mas isto não me irrita mais.
Agora que o anoitecer aconteceu e eu tenho apenas eu mesmo para encarar, a casca se partiu e minha vida não tem segredos a esconder, apenas fatos vividos que lembrar…
Como dos 35 anos de trabalho com ou sem carteira assinada, desde o primeiro concurso em que passei, aos 17 anos, e os 46 de comunicação, vez que não parei de escrever e editar depois da aposentadoria, até chegar neste blog, em que o patrão sou eu mesmo, uma razão a mais para descortinar muitas verdades que ficaram presas na garganta em nome de conveniências sociais ou por censura política ou por auto-censura.
E como as muitas aventuras vividas, profissionais, familiares, sentimentais e sexuais, que me permitiram ter uma vida rica, com muitas histórias para contar e outras tantas para esconder de netos e netas, mas não totalmente plena, já que a casca protetora prevaleceu sempre e nunca me permitiu
mergulhar de cabeça, me entregando, com paixão, a estas aventuras.
Ou como do amor intenso (e pouco ou não demonstrado) que tive por três mulheres: um, com aquela paixão arrebatada da juventude, que se contentou o tempo todo em olhar, em estar perto, em ouvir, sem nunca delatar o ardor do peito; outro, com o convencimento do conquistador que se lança a uma empreitada impossível e vence… e leva a amada para casa; e outro, definitivo, com o amor maduro, companheiro, permanente e consciente de que para se tornar infinito, o fundamental é se doar sem dominar ou exigir, mesmo correndo o risco de, algum dia, ele se tornar aquela chama que Vinícius cantava.
E como da certeza que tenho de ter contribuído para formar duas famílias, cada uma já formando suas próprias famílias, motivos de imenso orgulho, permanente alegria e distante admiração, não por perpetuar meu sobrenome e meu sangue ou meus conceitos de vida, mas por fazerem parte daquelas exceções entre seres humanos, úteis, produtivas, conscientes, livres e responsáveis e, mais que tudo, felizes… ou na permanente busca de assim serem. Como eu estarei, sempre…!