O anoitecer, da minha varanda (3)

E a noite chega…

Com a caçula de volta aos encantos de Popocatépetl  e  Iztaccihuatl , os vulcões apaixonados, volto à varanda. O anoitecer sempre trouxe um quê de angústia à minha alma, uma dúvida não resolvida ao longo de, pelo menos, 50 anos, que se amplia com a noite: a culpa por eu não ter me tornado um poeta, como eu gostaria de ter sido, foi da sociedade machista e preconceituosa em que nasci e vivi até hoje? Ou foi meu próprio medo de transgredir esta sociedade, me moldando à sua vontade por toda a minha vida?

Eu não tenho certeza absoluta ainda, mas beirando os 70 anos e, sozinho, vendo a noite chegar na minha varanda, com a imensa lua amarelada se assenhoreando do horizonte ainda azulado, eu tendo a assumir a culpa da minha covardia: a alma de poeta que eu sempre tive se omitiu atrás das conveniências da sociedade, da classe média a qual sempre pertenci, que só admira e valoriza quem “vence” na vida, um “vencer” que significa ‘olhar de cima’, ter carro do ano, ter casa com piscina, churrasqueira e um barco no píer,  usar só roupas de grife, viajar uma vez por ano a Miami para comprar “frivolidades mais em conta” ou para a Europa, para “ter um banho de civilização…”

É duro reconhecer que abandonei, num passado longínquo, minh’alma de poeta! Eu escrevi poesias quando aprendia a ler e escrever… Uma poesia minha, quando tinha 7/8 anos (alguma coisa falando de jarro e flores, que devia ser tão infantil ou imbecil que nem minha mãe guardou…) foi publicada no órgão oficial da cidade de Brazópolis nos idos de 1950 (muito provavelmente porque o redator, editor e diretor do jornal fosse meu padrinho de crisma…), sob o argumento de que era um garoto de 7/8 anos, neto da terra, que já escrevia poesias…!

Outra poesia minha, revolucionária – ‘Juntem-se a nós’ – circulou nos meios estudantis nos primeiros tempos do golpe militar, incentivando colegas a picharem muros e paredes e a gritarem ‘Abaixo a Ditadura’… e uma peça de teatro, escrita a duas mãos com o amigo Wandeir, – ‘Miríades ou De como um macaco quebrou a cabeça de outro e passou a usar capacete’ – permanece inédita até hoje porque foi escrita em versos dodecassílabos (nem Zé Mayer se arriscou a encená-la!).

Acho que a solidão tem seus encantos… No meu caso, está me devolvendo minh’alma de poeta… A situação do país e da sociedade brasileira hoje, me recorda os primórdios dos anos 50 e dos anos 60, quando a elite de sempre, acompanhada bovinamente pela classe média, derrubou governos legítimos em nome do combate ao ‘mar de lama’ ou ao comunismo ou à corrupção… (qualquer desculpa é válida quando o que interessa é retomar o poder!)

Mas, ao contrário de outros tempos, não tenho mais vontade de berrar que ‘está tudo errado’, ‘que o Brasil não merece tanta hipocrisia e podridão’, que ‘é preciso agitar as massas e derrubar os poderes constituídos’… Prefiro contemplar a imensa lua subindo pela semi-escuridão da noite, prefiro Milton cantando Chico e Gil: “Como beber dessa bebida amarga?/Tragar a dor, engolir a labuta?/Mesmo calada a boca, resta o peito/Silêncio na cidade não se escuta/De que me vale ser filho da santa?/Melhor seria ser filho da outra/Outra realidade menos morta/Tanta mentira tanta força bruta”//

Já não era sem tempo… Meu ciclo de vida está quase completo e só falta eu me aceitar exatamente como aquilo que, no seu começo e em todo o percurso até aqui, para sobreviver, eu me neguei a ser, poeta e romancista, mesmo que não edite uma linha sequer do que tenho escrito ou ainda pretendo escrever. A sociedade continua preconceituosa, mesquinha, cada ser humano, com as honrosas exceções de sempre, vivendo apenas em função de seu próprio umbigo, mas isto não me irrita mais.

Agora que o anoitecer aconteceu e eu tenho apenas eu mesmo para encarar, a casca se partiu e minha vida não tem segredos a esconder, apenas fatos vividos que lembrar…

Como dos 35 anos de trabalho com ou sem carteira assinada, desde o primeiro concurso em que passei, aos 17 anos, e os 46 de comunicação, vez que não parei de escrever e editar depois da aposentadoria, até chegar neste blog, em que o patrão sou eu mesmo, uma razão a mais para descortinar muitas verdades que ficaram presas na garganta em nome de conveniências sociais ou por censura política ou por auto-censura.

E como as muitas aventuras vividas, profissionais, familiares, sentimentais e sexuais, que me permitiram ter uma vida rica, com muitas histórias para contar e outras tantas para esconder de netos e netas, mas não totalmente plena, já que a casca protetora prevaleceu sempre e nunca me permitiu

Rio Guaporé: Rondônia do lado de cá e Bolívia do lado de lá

mergulhar de cabeça, me entregando, com paixão,  a estas aventuras.

 

 

Poço Encantado, Lençóis, na Chapada Diamantina

 

 

Dança do N’Goron da Costa do Marfim, África

 

 

 

 

 

Ou como do amor intenso (e pouco ou não demonstrado) que tive por três mulheres: um, com aquela paixão arrebatada da juventude, que se contentou o tempo todo em olhar, em estar perto, em ouvir, sem nunca delatar o ardor do peito; outro, com o convencimento do conquistador que se lança a uma empreitada impossível e vence… e leva a amada para casa; e outro, definitivo, com o amor maduro, companheiro, permanente e consciente de que para se tornar infinito, o fundamental é se doar sem dominar ou exigir, mesmo correndo o risco de, algum dia, ele se tornar aquela chama  que Vinícius cantava.

E como da certeza que tenho de ter contribuído para formar duas famílias, cada uma já formando suas próprias famílias, motivos de imenso orgulho, permanente alegria e distante admiração, não por perpetuar meu sobrenome e meu sangue ou meus conceitos de vida, mas por fazerem parte daquelas exceções entre seres humanos, úteis, produtivas, conscientes, livres e responsáveis e, mais que tudo, felizes… ou na permanente busca de assim serem. Como eu estarei, sempre…!

 

 

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