O anoitecer, da minha varanda (I)

Minha caçula voltou…

Minha caçula voltou… Não por muito tempo… mas voltou!

Esta frase ocupou minha mente, vinda do nada, logo depois que ela me ligou do México, pedindo sugestão para um presente que queria trazer para a avó. Por hábito, gravei a frase no computador e quedei-me a pensar. Por que a volta… temporária… de minha filha caçula estava mexendo tanto comigo?

Eu passei a vida toda, desde que me conscientizei que era alguém, ali pelos 8, 9 anos, sabendo que era um homem diferente, inadequado aos padrões masculinos determinados pela sociedade, e  buscando uma forma de sobreviver sem desapontar a família, os amigos da família, os meus próprios amigos, enfim. Ao contrário do que podem pensar alguns, isto não tem nada a ver com uma possível tendência homossexual… que, efetivamente, nunca tive!

Naquela época – anos 50/60 – e diferente de hoje, em que, mesmo com todo o preconceito, a homossexualidade é ‘tolerada’ pela sociedade, ela era considerada perversão, um pecado mortal, que mandava o pecador direto para o fogo do Inferno. Mesmo destino que teriam todos que não se enquadrassem aos padrões estabelecidos. Como, por exemplo, um menino não ser machão! Ou uma menina não gostar de brincar com boneca…

Minha ‘diferença’ não tinha relação com postura sexual, estava associada ao padrão, àquela época único aceitável, do machismo – o menino tinha que ser brigão, participar de brincadeiras violentas, não permitir que meninas entrassem em brincadeiras de homem, desprezar sentimento e poesia, ‘coisa de fresco,’ e coisas tais, o que não tinha nada a ver comigo… eu gostava de poesia e detestava violência! Só que a sociedade entendia isto como fraqueza, coisa de ‘mulherzinha’. E eu tive que aprender a me defender (inclusive de meu irmão, que vivia me chamando de Tereziiiinhaaaa)!

{Faço um colchete, porque há aqui uma instigante coincidência: comecei a escrever estes textos há mais de mês (e parei para curtir a presença de minha caçula em casa),  recomeçando agora (quando ela já voltou para o México), logo após dois acontecimentos, um envolvendo o ator global José Mayer e outro, um participante do BBB, repercutidos intensamente na mídia e motivos de polêmicas enfurecidas nas redes sociais, exatamente pelo contexto machista de ambos. Comprovando, aliás, que boa parte de nossa sociedade, apesar de toda a evolução social e emocional nestes 50 anos, continua considerando como normal e aceitável, mesmo que não o declare abertamente, a postura machista de muitos de seus homens, particularmente os heróis globais…

Mais instigante ainda, no caso de José Mayer, é que eu o conheci nos tempos de Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, em Belo Horizonte, eu estudando Jornalismo e ele, Letras, mas ambos envolvidos com teatro universitário, eu escrevendo peças e ele dirigindo e atuando. E, naquela época, Zé Mayer representava exatamente o oposto do que pareceu em seu denunciado “assédio”
a uma figurinista (assédio do qual foi acusado, também, por outra atriz mineira, Letícia Sabatella, de uma geração mais nova, e de grande prestígio por suas posições políticas firmes). Quando nos conhecemos, ele afrontava o padrão estigmatizado pela sociedade pois, como homem atuante no teatro, não era homossexual e convivia salutar e respeitosamente com as mulheres de teatro que, por este mesmo estigma social, eram prostitutas ou vadias, indignas de respeito.}

Fechado o colchete, esclareço a gozação fraterna:

meu pai, um médico que passou toda sua vida exercendo a profissão da maneira mais ética e humanista possível, tinha, no plano pessoal, conceitos hoje considerados retrógrados pelas gerações mais novas, tipo “homem que é homem não chora” ou “obrigação da mulher é cuidar dos filhos, da tranqüilidade do lar e da satisfação do marido ou o pai manda e os filhos obedecem…” E fazia questão de que os dois únicos filhos, machos, seguissem tais preceitos: o mais velho seguiu… Eu, não! Daí, o Tereziiiinhaaaa!

Mas, para não seguir, repito: eu tive que aprender a me defender… e a forma que eu consegui fazer isto foi abafar minha sensibilidade e me mostrar pelo lado racional, aliado a uma ironia, nem sempre assimilada pelos outros. Chorar? Com muito custo e só quando estivesse absolutamente sozinho… Acarinhar alguém? Nunca! Só a Lamp, cachorrinha de estimação da casa… Dizer ‘eu te amo’? Em hipótese alguma! ‘Eu gosto de você’ era mais do que suficiente… e não comprometia!

Eu me tornei homem envolto nesta casca. Minha primeira paixão nunca soube que eu fui apaixonado por ela.  Meu primeiro namoro só durou algum tempo porque toda a turma saia junta, cada um com a sua namorada, e eu e ela éramos os únicos que estávamos ‘solteiros’. E minha segunda namorada durou quatro anos porque a gente só se encontrava e namorava uns dias por ano, os do Carnaval.

Aí, numa viagem de ônibus exatamente para pular o Carnaval, e com ela, conheci minha primeira mulher. Com a cara e a coragem, ela havia ‘afrontado’ a família e fora a Belo Horizonte prestar exames para entrar no Curso de Jornalismo, havia sido bem sucedida e estava voltando para casa para comunicar à família que ia se mudar para a capital. Com a cara e a coragem! Enquanto eu, me achando “rei da cocada preta”, ia começar um cursinho para tentar, no final do ano, passar na Faculdade de Medicina, grande sonho de meu pai.

Apesar da viagem acontecer de madrugada – o ônibus saía às 22 e chegava às 06 horas – nós conversamos bastante, ela na poltrona e eu sentado no corredor, ao seu lado, o que foi uma coisa estranha para mim, que sempre fui muito arredio a conversas longas – nunca encontrava assunto suficiente para ficar batendo papo tanto tempo…

Ficamos amigos, ela enfrentou a família e voltou para o curso e, no meio do ano, desisti de Medicina (eu não tinha a menor vocação… o que eu gostava mesmo de fazer era escrever e Jornalismo, pelo que me dizia ela, era um bom começo) e fui tentar passar no Curso de Jornalismo. Passei em 2º lugar (uma forma de compensar a inevitável frustração de meu pai) e virei calouro dela. Ou, como dizia Xicho, um colega de sala, humorista nato, “o Leozim não é calouro… ele está c’a loura… do 2º ano!”).

Realmente, eu estava… tentando conquistá-la! E acabamos nos casando. Mas isto não mudou meu racionalismo, meu modo de encarar a vida como algo natural, sem grandes surpresas. Eu trabalhava muito, ela também e morávamos no 2º pavimento de um sobrado alugado num bairro afastado do trabalho… ou seja, a vida natural de quem começa a lutar pela vida. A primeira filha nasceu quase dois anos depois… e a segunda já estava a caminho quando eu recebi um convite financeiramente irrecusável para trabalhar em Brasília… (continua)

 

 

 

 

 

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