A notícia veio de longe, e fria, como quase todas as notícias vindas pelas redes sociais hoje são: “Zezé morreu!” Como? Não é possível! Ele era mais novo que eu… Comecei a contatar os parentes até encontrar um que confirmou: “É verdade! Alguém postou na rede da família, mas a gente ainda não sabe o que houve… Qualquer coisa, te aviso.”
Quedei-me a pensar: Zezé era (gozado como a gente se adapta rápido: já estou usando o verbo no passado!) primo de Lúcia, mas eu o conheci antes de me casar com ela. Logo depois que me separei da primeira mulher, havia domingos solitários em que uma amiga do trabalho, Wilma, me convidava para ir para a casa dela, uma família alegre, unida, acolhedora e sempre pronta para reunir parentes e amigos em torno de almoços animados e movimentados que avançavam pelo dia todo.
Zezé, policial militar, preto, forte, sempre envolvido em uma aura de mistério, geralmente aparecia por lá e participava ativamente do joguinho de mau-mau, que eu gostava, ou do truco, que eu não jogava. Depois, quando entrei para a família, me casando com a Lúcia, passamos a nos encontrar mais, principalmente na Chalueo, a chácara que a gente comprara para reunir a família nos fins de semana. Sua mãe, Tina, era uma das presenças assíduas da chácara, uma figura admirável que tinha uma história fantástica de vida. Alegre, divertida, sem papas na língua, conversávamos muito de manhãzinha… na chácara, pois ambos éramos madrugadores, ao contrário dos demais.
Já Zezé era o oposto, de pouco falar, e a amizade não passaria disto, um parente por afinidade que, mineiro como eu, não se abria muito, e com quem eu me encontrava de vez em quando para beber alguma coisa – eu bebia uísque com água mineral e ele rum com coca-cola – e jogar conversa fora, não fosse um fato acontecido ainda antes de nos tornarmos parentes. Mais ou menos assim, vez que, mais de 30 anos depois, minha memória já não é lá estas coisas:
Na minha época de esbórnia – entre meus dois casamentos – havia uma casa noturna na Asa Norte, Bar Academia, que a turma do serviço costumava freqüentar num dia de semana, quinta-feira, se não me falha a lembrança. Zezé, nas folgas da Polícia Militar, fazia a segurança de lá.
Quando não havia festas na minha casa nos finais de semana, eu costumava aparecer na casa noturna no sábado, geralmente com um ou dois companheiros de farra. Normalmente, a casa estava entupida de gente mas, desde que eu avisasse antes, Zezé sempre dava um jeito de arrumar uma mesa bem colocada para mim.
Certo sábado, lá estava eu bebericando meu uísque quando, na mesa ao lado, começou uma discussão: presumivelmente um casal de namorados com a metade da minha idade se desentendeu por alguma razão… A coisa começou a esquentar, mas antes que os seguranças chegassem, o rapaz se levantou de supetão e saiu em direção à porta, batendo o pé.
O burburinho em volta voltou ao normal, gente falando alto para superar a música, garçons correndo entre as mesas, cadeiras sendo arrastadas por casais que iam para a pista dançar. No meio desta “normalidade”, a jovem, que ficara sozinha à mesa, empurrou a cadeira dela para a minha mesa e sentou-se ao meu lado, pedindo desculpas e dizendo que detestava ficar sozinha…
Um dos amigos, Ari, já estava enganchado numa loura falsa, e o outro tinha ido dar uma volta para assuntar as “gatas” disponíveis. Eu, evidentemente, também estava disponível e, como disse, na minha fase de esbórnia, apesar de que jovens como aquela costumavam se aproximar de mim por um certo ar de confiança, paternal mesmo, que eu transmitia naturalmente, fruto da minha já proclamada timidez.
Naturalmente, também, passei o braço pelos ombros da garota e perguntei: “O que houve com seu namorado? É seu namorado, não é?” Ela se achegou ao meu peito e suspirou: “É… ou era! Não sei mais…!” Deu outro suspiro e atacou: “Ele quis abusar… Estava enfiando a mão por debaixo da minha saia… bem aqui, em público!” Eu ia retrucar qualquer coisa, sobre se a objeção dela era pelo ato em si ou pelo fato de ser em público, imaginando o que seria público ali, um ambiente de semi-escuridão em que ninguém, absolutamente ninguém, ficaria olhando para debaixo das mesas… quando senti um violento puxão por trás, em meu ombro livre. O namorado voltara, trazendo junto mais 04 jovens como ele, que rodearam a mesa.
Àquela época, academia ainda não era moda, mas já havia garotos “sarados”. Freqüentadores do Bar Academia, geralmente também o eram do Iate ou do Minas Tenis Club, bons nadadores e velejadores, queimados de sol, normalmente de ombros largos e costas quentes, pois filhinhos de papais com dinheiro ou autoridade, ou com ambos.
Ari e sua loura só não caíram das respectivas cadeiras porque as cadeiras da outra mesa não permitiam isto… o outro amigo continuava longe – e, se percebeu alguma coisa, não quis dar as caras – restando a mim ir levantando devagar, tentando me livrar da garra no ombro, ao mesmo tempo que me virava para encarar o garotão…!
Estava quase conseguindo quando uma outra mão agarrou o braço do rapaz, puxou-o para trás e levou-o para suas costas, enquanto encarava os outros jovens… Era Zezé! Sem levantar a voz, mas de modo que todos em volta ouvissem, foi direto: “Os cinco vão sair daqui agora, muito quietinhos, sem um pio… vão pegar seus carros e desaparecer! Daqui a cinco minutos eu vou lá fora e se eu enxergar qualquer um de vocês, vocês vão descobrir o que é uma boa briga de rua!”
Os cinco, absolutamente surpreendidos e boquiabertos, foram saindo silenciosamente, enquanto Zezé se virava para a garota, sentada e apavorada: “como você se chama?” A menina balbuciou: “Jussara…” “Você veio com este marginal? Qual é o nome de seu pai e o telefone de sua casa e o seu endereço?” Ela disse e ele ordenou: “Vou te colocar num taxi agora e daqui a meia hora vou ligar para sua casa – ai de você se não atender o telefone…!” Falou e fez. Pouco depois, voltou à minha mesa, para um recadinho: “este assunto acaba aqui! E tome cuidado com jovenzinhas desamparadas, meu amigo!” E saiu, não dando tempo nem de eu agradecer!
Noutro sábado, voltando ao Bar Academia, muito mais com a intenção de agradecer ao Zezé do que encontrar companhias dominicais, não o encontrei… e, segundo o garçom que costumava nos servir, ele não estava indo trabalhar lá porque tivera problemas com a corporação: dois dos rapazes que expulsara no entrevero comigo eram filhos de “p…s” grossas da Polícia Militar, e ele sofrera as conseqüências.
Fiquei com aquilo entalado na garganta, mas, por decisão dele, o assunto morrera mesmo. Em outras vezes que o encontrei no Bar Academia, não dava abertura nem sequer para agradecer… Entrei para a família depois, cruzamos nossos caminhos centenas e centenas de vezes e Zezé nunca mais tocou no assunto, nem com a família, nem comigo. Quando, sozinhos, eu ameaçava falar daquilo, ele, num gesto característico, levantava as sobrancelhas, baixava o rosto e sacudia a cabeça negativamente… E eu me calava!
Até um dia, na Chalueo, em que ficáramos fora da jogatina. As mulheres jogavam Canastrão na cozinha e os homens, truco na varanda. Eu não jogava truco e Zezé não formara dupla. Era noite de lua cheia e eu e meu copo de uísque fomos para a mesinha debaixo da jabuticabeira à beira da piscina, ouvindo Chitãozinho e Xororó, quando Zezé e seu rum com coca cola vieram me fazer companhia. E eu fui direto, desentalei o nó da garganta: “Não me enrola não, Zé… já faz muito tempo, mas o fato é que eu nunca te agradeci por ter me salvado de uma surra, e eu sei que você foi punido! O que aconteceu, afinal?”
E ele, com o gesto característico de levantar a sobrancelha baixando a cabeça mas, desta vez, sorrindo de lado: “Não aconteceu nada, pô… O pai do garoto era coronel, mas achou ótimo eu ter dado uma prensa nele, porque liquidou com o namoro! Ele achava que a garota era uma piranha… e era mesmo! Eu só fiquei longe do bar porque peguei plantões seguidos. Nada a ver com a confusão! E ainda teve uma vantagem, não é? Você se afastou das garotinhas e casou com a minha prima!”
Pois é… Esta história, obedecendo a vontade de Zezé, continuou secreta até agora. E só estou contando para que amigos e parentes saibam que por trás daquela aura de mistério que o Zezé envergava, havia um grande amigo, um amigo leal de quem sentirei falta. Que os deuses o recebam com alegria…
Oh Grande Leo… Assim como ele costumava chamá-lo. Que história massa. Linda homenagem. Obrigado por nos contar essa e tantas outras que enobrecem o caráter dele e me enchem mais ainda de muito orgulho de ser filho de um cara tão incrivelmente sensacional.
Pois é, Daniel, fico imaginando ele sentado numa nuvem com seu copinho de rum com coca cola, batendo um papinho descontraído com uma anja… Grande Zezé!