Da falta de caráter

O que leva um ser humano a mudar radicalmente suas convicções? Há uma história antiga, sempre lembrada pelos mais velhos, quase que como justificativa para não tomarem atitudes em momentos cruciais da vida, mostrando que o revoltado da juventude se torna um conservador na maturidade e um reacionário intransigente na velhice.

A justificativaDa falta de caráter 1 tem certa razão de ser: na juventude, a gente tem tudo a ganhar… na velhice, a gDa falta de caráter 2ente tem tudo a perder! Mas isto explica a atitude natural de um ser humano perante a vida, dependendo de sua situação sócio-cultural. Criado num lixão qualquer de uma grande cidade, o jovem se torna adulto rapidamente, em meio a troca de tiros entre policiais e bandidos e a revolta é apenas sobrevivência: ou ele mata ou ele morre… Quer dizer, jovens de lixões e periferias das grandes cidades dificilmente chegam à maturidade conservadora, quanto mais à velhice reacionária!

Reduzindo o quadro, então, amplio a pergunta: o que leva um ser humano de classe média, filho de classe média, estudado e, por “esforço próprio”, bem posto na vida, dar uma banana para suas convicções, convicções estas formadas ao longo de sua vida, convicções estas que transferiu a seus filhoDa falta de caráter 3s, convicções estas que o levaram a conquistar uma personalidade reconhecida pela sociedade em que vive?

Eu convivi, durante algum tempo, com um publicitário paranaense que tinDa falta de caráter 4ha duas obsessões: falar dos tempos em que, estudante, teve que fugir para Cuba, por causa da ditadura, e brigar com garçons dos restaurantes chiques que freqüentava, por ‘nunca acertarem o prato que ele pedira, da maneira que ele pedira’…!

Depois de jantarmos algumas vezes juntos, incomodado com aquela implicância dele, fui rude: “Pô, cara, você vivDa falta de caráter 5e dizendo que teve que fugir do Brasil porque brigava pela dignidade do povo… e agora maltrata este povo deste jeito?” E ele, com um ar de superioridade marcado pelo levantar da sobrancelha direita, me desarmou: “Agora, eu sou rico, cara! Posso fazer o que eu quiser!”

Não sei onde ele anda hoje. Sei que a agência da qual ele era diretor em Brasília, faliu. E sei que ele andou dando um monte de cheques sem fundos na praça. Talvez tenha se tornado pobre de novo, talvez tenha virado esquerdista de novo, Talvez esteja se lembrando dos tempos de revolucionário que brigava pela dignidade de povo… Ou, talvez, tenha se beneficiado de seu pragmatismo e encontrado outra fonte de renda que lhe permita continuar frequentando restaurantes da moda e continuar maltratando garçons…

O que não responde a minha pergunta. No  caso deste meu “amigo”, não havia convicções… havia interesses. Enquanto nada tinha, brigava pelo direito de todos; quando conquistou seu lugar ao sol, sobrepujando a massa, queria mais que os demais sifu…!  Mas, e quando o indivíduo constrói uma reputação pública, toda ela ligada aos anseios populares, toda ela voltada para o interesse das populações carentes, toda ela intimamente ligada à livre manifestação do pensamento… e, de repente, joga esta reputação no lixo e passa a defender uma posição retrógrada, se aliando aqueles que, sempre, colocaram seus próprios interesses acima dos ideais defendidos por ele? Será que ele nunca teve convicções coDa falta de caráter11mo meu “amigo”?

Esta dúvida me surgiu após ler que o senador Cristovam Buarque,  um esquerdista histórico, tinha declarado seu voto a favor do impeachment, enquanto a senadora Kátia Abreu, uma direitista histórica, não só declarara seu voto contra o impeachment, mas, também, dissera, com todas as letras, que a derrubada de Dilma era um golpe.

Cristovam, o ‘boquinha de ovo’, como dizia meu irmão quando eu o defendia, foi um bom reitor da UnB e um medíocre governador do DF,  um dos primeiros executivos públicos a tentar, através do Bolsa-Escola, implementar um projeto de inserção social que permitisse reduzir a horrorosa distribuição de renda persistente no Brasil.  Apesar disto, da boa idéia plantada em Brasília, que pegou, da oDa falta de caráter12bediência dos motoristas às faixas de pedestres, e da introdução dos restaurantes populares construídos nas satélites de baixa renda, foi um governo igual a tantos outros, cheio de disputas sociais, inclusive com sindicatos, que eram sua base eleitoral e de manutenção das benesses para os segmentos mais afortunados, especialmente os especuladores imobiliários e empreiteiras, base da economia da capital.

A mediocridade de seu governo não conseguiu reelegê-lo, mas a força da esquerda na capital e sua devoção à educação conseguiram torná-lo senador, em dois mandatos, o segundo a encerrar-se em 2018, agora com imensas possibilidades de não ser novamente renovado nas urnas, exatamente pelas convicções jogadas no lixo que caracterizaram as posições de Cristóvam nestes tempos recentes.

Dizem os adversáriosDa falta de caráter10 políticos do senador que, antes mesmo de virar o disco de suas convicções (ele saiu do PT e filiou-se ao PDT, de coloração esquerdista também… e saiu do PDT para filiar-se ao PPS, levado pela deputada distrital Celina Leão, ora afastada da presidência da Câmara Distrital por corrupção), Cristóvam tinha certeza que, pelas posturas adotadas nos últimos tempos, não conseguiria se reeleger para um novo mandato no SenDa falta de caráter14ado. Por isto, negociava, com o governo interino, um posto importante no exterior, talvez a representação do Brasil na UNESCO.

Não sei se é verdade. Se for, saberemos depois do impeachment. Se for, de qualquer modo, não haverá diferença entre ele e meu “amigo” publicitário. Demonstrando que uma das principais características do político é a falta de caráter. Se não for, minha pergunta continuará sem resposta…

 

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