A morte e a morte do amor

Aproximando-me dos 70 anos, desde sempre e ainda agnóstico, a caraminholagem é inevitável:  o que é a morte?  Que morte…  a  física ou a do amor?, indagam alguns neurônios,  ainda jovens e ativos. Qual a diferença?,  responde, socraticamente, meu velho e esquecido eu poeta, que lia e ouvia Vinícius de Moraes como um deus único e que devia ser imitado até no gosto pelo uísque com gelo.

Meu eu racioAmorte e a morte do amor 1nal, que prevaleceu por toda a minha vida, dá um basta na discussão: a dúvida vem de um fato concreto, já que alguém fundamental na minha vida, vive momento crucial de sua própria vida, a perspectiva da morte física, pelo anúncio de um câncer…

Meu eu racional não tem muito o que dizer a quem vislumbra a morte física. Não sAmorte e a morte do amor 23endo religioso, não acreditando que um deus todo poderoso possa acolher em seus braços quem nunca pecou ou, se o fez, arrependeu-se a tempo, só posso dizer que estou aqui, presente, fazendo o possível para que a morte, antes de vir, aconteça suave e tranquilamente, sem dor e sem imprecações contra Deus que, quem sabe?, pode existir e não gostar.

O Sócrates, que cito ali em cima, defendia, séculos atrás, numa época em que seus contemporâneos gregos acreditavam num monte de deuses habitandAmorte e a morte do amor 5o o Olimpo, de onde interferiam na vida de todo mundo, que o ser humano era dotado de uma alma imortal, sendo, por isso, um ente espiritual que vive, por um tempo, encarnado em matéria. A morte, portanto, não seria nada mais, nada menos, que um retorno à sua origem, o ente espiritual.Amorte e a morte do amor 7

Pulando séculos, encontro outro filósofo (e jurista, político, escritor, cético e humanista), Montaigne, que, à época dos grandes descobrimentos, encarava a morte como algo bom e dizia que “meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade”, querendo dizer ele que aquilo que era “a mais horrível das coisas horríveis” para a maioria, na verdade era o “único porto contra os tormentos desta vida”, a receita mais “comum e imediata contra todos os males”.

Mais um pulo e me deparo com Sartre, outro francês como Montaigne, já dos meus tempos, por nós, jovens à época, reverenciado pelo existencialismo e por seu “casamento aberto” com Simone de Beauvoir, a musa do feminismo. Para ele, o homem é condicionalmente livre, não sendo nada quando nasce e retornando ao nada quando morre. Entre vida e morte, o homem é somente o que ele consegue ser ou fazer em sua existência, o que ele consegue fazer de si mesmo. Com isso, Sartre diz que a morte é transformar em nada (nadificar) todas as possibilidades de se ser, “nadificação essa que já não mais faz parte das possibilidades” do ser, vez que, morto, ele não é mais nada.

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E eu, que não sou filósofo e me aproximo da morte, vendo a velhice bem ali, por cima dos ombros dos meus netos, que já se tornam jovens, e logo logo serão adultos, concordo com ele: a morte é o fim. Ponto. E ainda é melhor que a morte do amor…

Porque a morte do amoAmorte e a morte do amor 13r não é o fim… até que haja, e pode haver sempre, um novo amor. Meu velho e esquecido eu poeta e meu sempre atento eu racional podem ficar horasAmorte e a morte do amor 14 e horas deblaterando contra ou a favor das diferenças entre paixão e amor ou da importância ou não de se conviver com a rotina ou da validade ou não de uma separação, considerando-se, unicamente,  os aspectos econômico-financeiros… Acima de qualquer consideração mais filosófica, o fundamental é que, conforme postei outro dia, não há amor, por mais antigo e profundo que seja, que resista à falta de respeito e/ou de confiança.

Vinícius, argumenta meu eu poeta, já declamava, entre um gole de uísque e outro, entre uma musa inspiradora e outra, com quem, geralmente, se casava, que “…De repente, não mais que de repente//Fez-se de triste o que se fez amante//E de sozinho Amorte e a morte do amor 17o que se fez contente.//FeAmorte e a morte do amor 16z-se do amigo próximo o distante//Fez-se da vida uma aventura errante//De repente, não mais que de repente.

E é assim mesmo, num repente, entre uma noite mal dormida e um café da manhã apressado, que se pressente que alguma coisa está fora do lugar…  A maneira enviesada de olhar,  a secura da voz ao falar,  o tchau apressado ao sair e a voz, ah! a voz incomodada ao atender o telefone, quando chamada uma única vez, mas parecendo que passou o dia inteiro, e a todo momento, atendendo aquele chamado,  e só o mesmo chamado.

Racionalizando, digo que a agonia, então, podia ser rápida… mas, dificilmente, é! Nas coisas do amor, nunca há racionalidade. A morte está ali, visível, palpAmorte e a morte do amor 18ável, não há porque refugar, amuar-se, trocar ofensas dificilmente perdoáveis… Bastaria botar as cartas na mesa e tomar as decisões práticas necessárias.  Mas ninguém gosta de se sentir derrotado ou, pior, de perder algo (olha’í Vinicius de novo) que era uma chama, que podia ser eterna, masAmorte e a morte do amor 19 não foi…

E se a morte do amor acontece porque um novo amor – ou um velho amor desencontrado – apareceu na vida de um?  Para este, há toda a esperança de um novo encontro com a felicidade ao seu alcance… Para o outro, o desespero do amor morto e da perspectiva da solidão à frente. E a vontade imensa de não permitir que o velho amor seja feliz às custas da sua infelicidade!

Aqui, meu eu racional fala mais forte: não há possibilidade de sobrevivência para um amor de um lado só. Não há como manter um relacionamento unilateral. Apesar dos tantos e tantos romances, filmes, novelas, histórias de amor não correspondido, que tornam-se dramas de eterna lembrança para muita gente, mal amados só sobrevivem, na vida real, se possuem algum traço masoquista em sua personalidade e gostam de se tornarem eternos coitadinhos.

Do mesmo modo, poAmorte e a morte do amor 20r mais que Francisco diga que “o perdão é vital para nossa saúde emocional e sobrevivência espiritual”, nós, seres humanos comuns, muito mais próximos dos animais do que dos anjos, temos certeza que vital para nossa saúde emocional é desejar os pioreAmorte e a morte do amor 22s males para quem nos desrespeita (e o apodrecimento no inferno para quem nos trai), e que nossa sobrevivência material, onde entra a dignidade, onde entra a honra, onde entra o orgulho, é muito mais importante que a espiritual.

Assim, a morte do amor, por não ser o fim como a morte física,  é pior que ela, pois não leva ao nada. A vida continua, amarga, desesperada, sem perspectivas, um poço de ódio a corroer os anos de vida que ainda restam para um… ou a esperança de uma nova vida embasada em um novo amor que, logo ali na frente, pode repetir o velho amor e morrer, também, para outro! Com outra vida que continua, amarga, desesperada, com possibilidades sombrias à frente, um poço de angústia a corroer os anos de vida que ainda restam!

Ou não!, como Amorte e a morte do amor 21diria Caetano… Porque, como cantou Gonzaguinha, “Viver//E não ter a vergonha//De ser feliz//Cantar e cantar e cantar//A beleza de ser//Um eterno aprendiz//Ah meu Deus! Eu sei, eu sei//Que a vida devia ser//Bem melhor e será//Mas isso não impede//Que eu repita//É bonita, é bonita//E é bonita…//

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