O povo brasileiro no geral, independentemente de cor, religião ou posição social, sempre teve uma conhecida, e elogiada, postura cordial perante a vida. Cordial no sentido de afetuoso, sincero, afável, franco, afetivo, amistoso, carinhoso, solidário… Mesmo com a violência hoje presente nas metrópoles e grandes cidades, o estrangeiro que nos visita se encanta com certas peculiaridades muito nossas, como uma alegria natural de viver, apesar de, muitas vezes, estarmos enfrentando as maiores dificuldades ou como a criatividade para resolver qualquer embaraço, aplicando o famoso jeitinho.
Nos últimos tempos, esta cordialidade está desaparecendo em meio a uma violência descontrolada, que se manifesta em qualquer lugar e a qualquer momento, como nos estádios de futebol, em passeatasde apoio ou de desapoio a políticos, em aeroportos ou nos shoppings ou em restaurantes, onde personalidades públicas, mesmo solitárias, são destratadas ou xingadas ou cuspidas…
Qual a real ou reais causas desta situação?
Há aqueles que indicam a manutenção do poder por um único partido por tanto tempo e aqueles que falam da cobertura tendenciosa e escandalosa da grande imprensa, há aqueles que dizem que as redes sociais abriram as portas para o extravasamento do que há de pior no ser humano, pela possibilidade do anonimato e aqueles que apontam a perda do poder pelas elites, que sempre controlaram nossos governos e nossa gente. Eu acho que tudo isto engrossa o caldo da violência, mas creio que a principal causa está no inconformismo do brasileiro com um tipo de vida que não mais lhe satisfaz.
Aquele 1% de poderosos, que sempre manejou os cordéis do país, sente que estes cordéis estão sem cerol e estão se enroscando em processos judiciais inexistentes no passado; aquelas classes mais e medianamente abastadas, que sempre apreciaram alguns privilegiozinhos de classe, sentem que mais gente, uma gentinha sem educação de berço e sem respeito pela hierarquia, que não mais conhece o seu lugar, quer abocanhar esses privilegiozinhos também, e sabem que uma demanda maior reduz a oferta; e as classes desfavorecidas sentem que , além do penoso trabalho do dia-a-dia, além das duas a três horas de conduções entupidas e saculejantes por vias engarrafadas e inseguras, além da marmita fria e da noite mal transada pelo sono e cansaço, existe um mundo melhor, que precisa ser vivido e não mais sonhado… pelo menos, pelos filhos!
Eu acho mais que nós estamos vivendo hoje, um tempo de espera. Com pequenas rusgas e escaramuças, que têm o dom de beliscar as forças de cada lado, sem partir para a batalha porque o motivo para ela neste momento, o impeachment, ainda não se deu. Daí que Lula faz uma petição à Comissão de Direitos Humanos da ONU e denuncia a parcialidade do juiz Sérgio Moro e, imediatamente, um juiz substituto de 1ª Instância de Brasília, numa decisão em que confessa nem ter lido a defesa prévia do ex-presidente, responde com a transformação de Lula em réu na Lava Jato.
Na mesma toada, a atriz Letícia Sabatella é xingada de sem vergonha, puta, petista vagabunda e quase agredida quando passava por uma praça de Curitiba, por manifestantes pró-impeachment (ela própria filmou o fato, divulgando-o através das redes sociais) e, na hora, alguns blogueiros replicam com uma campanha para identificar os agressores, o que deu certo, pelo menos em relação a um, filho de um personagem denunciado no escândalo do Banestado, que envolvia figurões e figurinhas do PSDB, e onde o mesmo juiz Moro não conseguiu prender ninguém (alguém arrisca dizer por quê?).
Mede-se forças neste tempo de espera. Mas, o confronto virá! No afastamento definitivo da presidenta legitimamente eleita, por um monte de excelências que carregam nas costas crimes muito mais graves que os que ela não cometeu, ou numa possível prisão de Lula, por reformas feitas por empreiteiras, em um sítio e um apartamento triplex que, legalmente, não são dele, ou pela delação, sem provas, de que tentou atrapalhar a Lava Jato.
Enfim, tenho absoluta certeza que o brasileiro cordial, naquele sentido de afetuoso, sincero, afável, franco, afetivo, amistoso e carinhoso, nunca existiu. Sempre se vê e se verá muito brasileiro solidário, prestativo a tempo e a hora quando grandes tragédias acontecem ou quando o vizinho, mesmo detestável, sofre algum assalto violento. Mas, fica por aí. Nossa verdadeira face está despontando, o que, até certo ponto, é bom, porque indica que o Brasil está se levantando de seu berço esplêndido em busca de alguma coisa melhor.
Sérgio Buarque de Holanda (o pai do Chico), um dos grandes historiadores do Brasil, que introduziu o conceito de “homem cordial” no clássico Raízes do Brasil, dizia que as raízes do caráter brasileiro estão no meio rural e patriarcal do período colonial, e cordialidade, no caso, não significava bons modos, bondade ou amizade. Na verdade, nossa forma de convivência polida, nada mais é que um disfarce que permite a cada um de nós preservar suas sensibilidade e emotividade individuais, de modo que o conjunto, a sociedade, para a qual a gente está se lixando, não interfira diretamente em nossa vida.
De uns tempos para cá, esta sociedade começou a interferir bastante na nossa vida, obrigando-nos a tomar atitudes, seja para mandar embora a “secretária do lar” que, com direitos, ficou além de nossas posses, seja para viajar de avião pela primeira vez, para visitar a parentada nos cafundós, seja para declarar corretamente, sem mutretas, o imposto de renda, seja para fazer um rolezinho com os bacanas no shopping… Este disfarce, enfim, está se desfazendo… A vida é bonita, mas pode ser linda! Se os políticos, as autoridades, o patrão e o meu vizinho só querem saber de seus próprios umbigos, não quero nem saber, eu quero mais. E vou ter mais, nem que tenha que mostrar minha cara e abrir meu caminho a porrada!