Em 1964, depois de uns dois anos de preparação silenciosa e muito bem conduzida por políticos conservadores, grandes empresários de direita e militares doutrinados pelo pensamento “democrático” norte-americano, houve um golpe contra um presidente, que fora eleito legitimamente como vice – naquela época, vice também tinha que ser eleito, independentemente do presidente, tanto que João Goulart não era companheiro de chapa de Jânio Quadros, o presidente eleito, que havia renunciado.
Naquela época, mesmo com os tanques ocupando a BR-3 em direção ao Rio de Janeiro, numa decisão inesperada e intempestiva do general Mourão Filho, ninguém dizia golpe… dizia-se revolução em defesa da democracia e contra o comunismo e a cubanização do Brasil. E justificavam que golpe era a tomada do poder pela força, enquanto “aquela revolução” tinha apoio popular, como demonstraram as Marchas com Deus pela família, que haviam saído às ruas de São Paulo, Rio, Belo Horizonte… “espontaneamente” convocadas pela grande imprensa, com a desinteressada contribuição financeira de empresários patriotas e de rigorosa formação cristã ocidental.
A “democracia cívico-militar”, que salvou o Brasil do comunismo pagão por 21 anos, só começou a ser chamada daquilo que ela realmente foi, uma ditadura impiedosa – que sufocou a liberdade, que torturou e matou quem a contestava e que despolitizou várias gerações de jovens – há pouco tempo, mesmo a redemocratização, lenta, gradual e consentida, tendo acontecido em 1975, 41 anos atrás.
De 1975 a 2002, o Brasil elegeu cinco presidentes, todos eles comprometidos com as mesmas forças, políticas e empresariais, que armaram o golpe, através dos militares, em 1964: Sarney, a essência da plutocracia brasileira, Collor, filho e herdeiro de um ‘coronel’ nordestino, Itamar Franco, legítimo representante da classe média udenista, e Fernando Henrique Cardoso, o intelectual de esquerda que, assumido o poder, pediu para esquecerem tudo que ele tinha escrito, porque não era bem aquilo que ele pretendia fazer como presidente. Fez o oposto, claro, que ninguém é de ferro!
Em 2002, o povão resolveu mostrar a sua cara… e elegeu Lula, operário sem instrução, que falava palavrão e tomava cachaça, algo inconcebível para aquelas forças políticas e empresariais que mandaram no Brasi durante toda a sua existência como país civilizado. Não havia como mudar regras democráticas, não havia militares disponíveis para golpear, não havia povão para manipular… mas eles, realmente, não gostaram e se deram uma desculpa: ‘Um despreparado como Lula vai fazer tanta besteira, que o povão vai exigir a nossa volta!’
Lula não fez besteira e a população, não só o povão, o elegeu para um segundo mandato. E elegeu quem ele indicou, Dilma, para substituí-lo. E elegeu-a, de novo, para um segundo mandato… Aí, era demais! 16 anos com o povão mandando? E com o risco do Lula voltar e continuar mandando mais 16 anos ou mais? “Assim não pode! Assim não dá!”, como diria Fernando Henrique Cardoso.
Os militares não estavam mais dispostos ou disponíveis. Mas juízes, procuradores, promotores, policiais federais e funcionários da receita federal… a casta do funcionalismo público, aquela turma que recebe salários e penduricalhos que os torna partícipes da elite do país, podiam servir. Eles também não gostam desta gentalha que fala alto, que entulha os shoppings e aeroportos, que enfarofa as lindas praias nordestinas, que entope as ruas de carros… enfim, que incomoda suas existências de pessoas de bem…! Vamos ao golpe democrático, pois!
Primeiro, uma motivação jurídica para o impeachment da presidenta, a justificativa para se contrapor aos 54 milhões de votos que a elegeram – afinal, outros 50 milhões não votaram nela… a diferença é mínima! Assim, inflamados pelo candidato derrotado, o alto funcionalismo levantou algumas possibilidades: umas determinações da presidenta, que foram usadas por todos os presidentes anteriores, mas que o Tribunal de Contas da União resolveu achar impróprios agora. E que a grande imprensa, comparsa até o pescoço, chamou de pedaladas fiscais, para fácil compreensão do povão. Para garantir, acrescentaram uns decretos assinados sem o “consentimento” dos políticos… e foi armado o circo!
No dia da votação na Câmara Legislativa, o circo horrorizou o mundo. Em nome de Deus, da esposa muito amada, dos filhos queridos e até do único torturador reconhecido como tal pela Justiça brasileira, os deputados votaram pelo impeachment de Dilma Roussef. E encaminharam à apreciação dos senhores senadores que, até mesmo para não passar recibo da desmoralização da Câmara, admitiram o processo, que ainda está em andamento.
Noutra instância golpista, policiais federais, procuradores e um juiz de primeira instância se lançavam à caça do prêmio maior, Lula.
Abrindo parêntesis para elucubrar e rir, disfarçadamente: (as delações premiadas feitas até agora, especificamente as que vazaram “inadvertidamente”, indicam que alguns bilhões de reais da Petrobras viraram propinas distribuídas pelos empresários – os mesmos de sempre – a agentes públicos, políticos e governantes eleitos; segundo o Globo, Pedro Barusco, um ex-gerente da empresa, garantiu prisão domiciliar devolvendo 381,1 milhões de reais, e Paulo Roberto Costa, um ex-diretor, garantiu a tornozeleira eletrônica fora da prisão, devolvendo R$101,3 milhões. Eu disse: combinaram devolver… não quer dizer que foi só isto que roubaram!
Lula está sendo acusado de aceitar dinheiro de empreiteiras que fizeram reformas, no valor de R$1,2 milhão e R$777 mil, respectivamente, em um sítio em Atibaia, e em um apartamento na praia do Guarujá, que não são dele, por ter sua mulher comprado um barco e dois pedalinhos (R$5 mil) para colocar no sítio e por ter sua mulher indicado reformas a serem feitas na cozinha do dito apartamento, cujo valor seria de R$ 250 mil reais… Somando tudo, dá R$2, 23 milhões, exatos 2,2% do que o diretor Paulo Roberto Costa prometeu devolver!
Ou seja, a impressão que me dá é que a elite do funcionalismo público, as famílias donas da mídia e os grandes capitalistas nacionais e multinacionais querem prender o Lula por considerá-lo idiota, pois um “chefe de uma quadrilha de bandidos” que recebe ínfimos 2,2% do que apenas um de seus bandidos roubou, não merece participar da ‘tchurma’…) E fecho os parêntesis, mas não as gargalhadas.
Eu brinco, mas o assunto não é para isto. O golpe foi aplicado e segue, em marcha batida, para sua conclusão. Sem tanques nas ruas, sem paus-de-arara, sem confrontações populares… apenas uma “justiça” histórica na concepção deles: quem sempre mandou no país, retoma seu mando. A democracia? … Ah! Que se f…* a democracia!