Durante boa parte da minha infância, eu fui “doutrinado” para ser médico. Depois de um bom tempo correndo o Brasil como sanitarista – médico e diretor de leprosários – meu pai se fixou em Belo Horizonte, como médico do Estado, ainda envolvido com a hanseníase, e com consultório próprio, exercendo sua especialidade, otorrino-laringologia. Meu único irmão, mais velho, sempre detestou estudar, passando de ano aos trancos e barrancos, o oposto de mim, que sempre fui ‘cdf’.
Não tinha como escapar, pois: era o herdeiro natural do pai. Sempre tímido, pouco afeito a discussões ou rebeldias, seguia, conformado e sem maiores questionamentos, mesmo íntimos, ao desejo dos mais velhos. Ainda cursando o 3º ano de científico (o último ano do 2° grau, hoje), fiz as provas para a Faculdade de Medicina da UFMG, não passando. E, para minha própria surpresa, fiquei até feliz, pois começava a perceber que Medicina não era minha praia.
Mesmo assim, fui fazer um cursinho. Ainda não existiam os vestibulares como hoje… Apesar das matérias comuns, cada faculdade fazia suas provas e, por isso, a gente optava por cursinhos mais dirigidos para o curso que se pretendia seguir. Nos finalmente do meu cursinho, eu tomei consciência absoluta que o que eu queria fazer era qualquer coisa ligada ao conhecimento do ser humano, não do corpo humano, qualquer área que, no fim, me permitisse ler e escrever muito, algo que eu fazia com imenso prazer desde os 11/12 anos.
Verificando os cursos à disposição àquela época, parei no Jornalismo, um curso ainda incipiente, encaixado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, que tinha a pretensão de formar jovens em uma profissão que tinha certas ressalvas da sociedade conservadora de então. Fiz as provas e passei e só então comuniquei a meus pais minha opção. Para compensar o desgosto, mostrei a lista de aprovados, meu nome num ‘brilhante’ 2° lugar.
Quando entrei no cursinho, com aulas de manhã e à tarde, parara de trabalhar. Meus pais garantiam a cama, a comida, a roupa lavada e o cursinho… e as despesas íntimas – cigarro, cerveja, namorada – eu bancava com as economias que guardara durante os dois anos de trabalho numa autarquia estatal. Quando entrei no Curso de Jornalismo – com aulas de manhã – passei num concurso da Caixa Econômica Estadual e passei a trabalhar de meio-dia às seis da tarde (como eu era universitário, podia chegar ao meio dia e meia). E logo surgiram os estágios que, no meu caso, só podiam ser à noite.
Meu primeiro foi no Diário da Tarde, o jornal vespertino dos Diários Associados em Belo Horizonte. Na primeira noite que cheguei na redação, um jovem ainda tímido, que falava muito baixo, usando óculos de lentes grossas e esculachado no vestir, fui mandado para a Cidade Industrial, para cobrir um assalto a uma agência do Banco do Brasil que, segundo o informante, estava acontecendo no momento que ele ligara para o jornal.
Fomos, o motorista e eu, carregando uma máquina fotográfica com flash que eu nunca manejara, já que não havia fotógrafo disponível no momento. Chegamos no endereço indicado, realmente uma agência do banco… absolutamente fechada e vazia! Nem um vigia, aparentemente! O local todo em volta não tinha viv’alma! O motorista, experiente, disse que era bom a gente dar uma rodada procurando outras agências bancárias, que o informante poderia ter errado o endereço. Rodamos por uma hora mais ou menos… e nada! O mesmo padrão em tudo: escuridão, silêncio, vazio de gente! Voltei frustrado, o redator-chefe já tinha ido embora e eu também fui.
Na noite seguinte, levei uma bronca monumental, quando justifiquei a ausência da matéria, sob um argumento simples: “não houvera assalto? Que eu tivesse escrito, então, sobre a ‘sacanagem’ dos trotes, das informações falsas, do prejuízo que isto representava para a sociedade, que inventasse alguma coisa sobre a insegurança das ruas da Cidade Industrial ou sobre as agências sem vigias… Isto seria bom para o jornal, que teria mais força junto a prefeitura e o banco…!
Esta noite, eu tive certeza absoluta que não tinha a menor vocação para ser repórter! E esta certeza não mudou nem quando, logo depois, encaixei minha primeira matéria no jornal: “E quando acabou, Benedito disse: bendita vingança”, sobre um velho preto de cabeça branca que eu acompanhei assistindo o jogo Brasil e Uruguai pelas semi-finais da IX Copa Jules Rimet, em 1970. Eu aprendera uma das lições do redator-chefe: pegara a realidade de uma torcida pública – na escadaria da Igreja São José – me fixara num personagem típico, que representasse o todo, e salpicara um pouco de fantasia, tornando a matéria fria (que, quem, quando+como+onde) em um texto gostoso de se ler. Aí nasceu minha profissão: edito
r, com enormes sonhos de me tornar escritor, o que não consegui até hoje!
Conto tudo isto para mostrar que a essência da imprensa – um negócio com seus próprios interesses – não mudou muito nestes quase 50 anos, com uma ressalva: até uns 20 anos atrás, ainda era possível encontrar certa isenção no jornalismo diário e semanal, com a voz dos donos se limitando aos editoriais e não vazando para muitos dos fatos noticiados, às vezes distorcendo-os em benefício próprio, como acontece hoje.
Isto fica visível com a notícia blogada pelo jornalista Fernando Rodrigues, do UOL: “em 2015, os principais veículos da imprensa tradicional receberam R$ 591,5 milhões a menos em relação a 2014. Só em seis emissoras do Grupo Globo, o corte em 2015 representa 34% da verba recebida no ano anterior. Foram R$ 206,3 milhões a menos para a Rede Globo e outras emissoras…” Em relação às revistas, “de um ano para outro, o corte da verba publicitária federal… foi da ordem de 43%. As receitas para as que mais circularam cairam de R$ 116 milhões para R$ 66 milhões.” Em relação à grande imprensa, “O Globo perdeu quase metade da verba recebida de um ano para outro. Em 2014, angariou R$ 22,9 milhões. Em 2015, caiu para R$ 12,8 milhões. O Estadão recebeu R$ 18 milhões em 2014 e, em 2015, caiu 10,8 milhões. Folha recebeu R$ 15,5 milhões em 2014 e, em 2015, viu a verba publicitária cair para R$ 13,6 milhões. O Valor perdeu R$ 1 milhão entre um ano e outro.”
Por aí, dá para entender porque a presidenta afastada (bem como seu ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Edinho Silva) tornou-se ‘persona non grata’ aos barões da mídia, que apoiam fervorosamente o impeachment, mesmo que, para isto, tenham tido que idolatrar o renunciante Eduardo Cunha.
Como a justiça divina não tarda tanto quanto a brasileira, os barões da mídia já estão pagando pelo pecado da ambição desenfreada. Dados do Instituto Verificador de Circulação, IVC, financiado pelas próprias empresas jornalísticas, para medir o alcance de seus veículos e informar ao mercado publicitário quantas pessoas lêem cada um deles, mostram que,
entre 2013 e 2016, a Folha de São Paulo teve uma queda de aproximadamente um terço (30%) de sua circulação impressa, o Estadão, 23%, e O Globo, 20%. Neste ritmo, o jornalismo impresso acaba, no Brasil, em 10 anos!