Cadê os culhões?

No jogo político (hipócrita? safado? enganador?) que vive o Brasil, há um velho capítulo que reapareceu na mídia e, rapidamente, desapareceu das manchetes: a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro (que já saiu da prisão, aliás), delação que, em texto, já tinha sido divulgada, seletivamente como sempre, pela grande imprensa. Quando em vídeo, com o delator falando ao vivo, parecia que as denúncias ficariam mais críveis, apesar de todo mundo que vive ou acompanha a política saber que o que está sendo anunciado é exatamente o que acontece no Brasil desde que viramos colônia de Portugal… Ou seja, safadeza e hipocrisia fazem parte da cultura nacional!

Mas, porém, todavia, há um fato incontestável que surgiu da delação de Lúcio Funaro e, exatamente por isto, o assunto foi celeremente jogado para debaixo do tapete: a compra de deputados por Eduardo Cunha, então todo poderoso presidente da Câmara Federal, para votarem pelo impeachment da presidenta eleita por 54 milhões de votos, Dilma Roussef (do mesmo jeito que o atual presidente comprou boa parte dos deputados para não ter o mesmo destino da ex presidenta, não é mesmo?)

Ninguém comenta, também, que tramita pelas gavetas do Supremo Tribunal Federal uma ação bem fundamentada pelo advogado da presidenta impinchada, pedindo a anulação do dito cujo, o impeachment, que, caso a delação de Funaro lhe fosse apensada, deixaria os supremos meretíssimos em pânico: afinal, comprovado o golpe, como não anular a posse de Temer e todas as medidas tomadas por seu governo nestes quase dois anos de desgoverno?

Isto não vai acontecer, evidentemente. Apesar da imponência das capas pretas, que lhes dão aquela aura de supremos, nenhum deles tem culhões para tomar uma atitude destas, por mais correta e justa que ela seja. Mas, é divertido imaginar uma titubeante Presidente (eu disse Pre-si-den-tê) do Supremo colocando em discussão perante seus eminentíssimos pares, o julgamento de uma Ação de Inconstitucionalidade do processo de impeachment:

Presidentê: “Vamos nos assentar, por favor. Declaro reabertos os trabalhos desta Sessão Plenária do Supremo Tribunal Federal e, dando continuidade ao julgamento da Ação de Inconstitucionalidade 5 mil e qualquer coisa, passo a palavra ao eminente ministro Fulano de Tal, para voto.”

Ministro Fulano de Tal: “Obrigado, sra. presidentê, eu saúdo a todos e, em especial, o eminente ministro Sicrano do Qual, pelo voto que também eu ouvi atentamente. Segundo o requerente, a previsibilidade do impeachment presidencial nos moldes da legislação impugnada ofenderia o art. 283, inciso CCCXXXIII, da Constituição Federal de 1988, o qual prescreve ser vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios: “estabelecer regras atípicas de cassação de autoridade legitimamente eleita pelo povo, embaraçar-lhe o exercício constitucional ou manter com ela e seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Contudo, ao refletir sobre o tema, também me vejo inclinado a discordar das relevantes considerações trazidas pelo eminente Ministro Relator, e o faço pelas razões a seguir delineadas. Muito se falou, neste Tribunal, acerca da legitimidade de um mandato, adotada no Brasil – consoante o dispositivo constitucional citado -, estabelecendo-se que se trata, em linhas gerais, do princípio segundo o qual o Estado está dissociado do Governo e não orienta a tomada de decisões por dogmas e preceitos políticos.

Também já se falou, nesta Casa, que legitimidade não se confunde com legitimismo e que o Estado brasileiro não é inimigo da política, tampouco desconhece o analfabetismo político que permeia a sociedade brasileira. Prova disso são as inúmeras previsões constantes da Constituição Federal que têm por escopo garantir a liberdade de crença política e de ateísmo político. Pois bem, a separação entre o Estado Brasileiro e o Governo não é uma separação absoluta. A neutralidade diante das políticas que a legitimidade estatal impõe encontra ressalvas em razão de preceitos constantes da própria Constituição Federal. Por essas razões, voto pela improcedência da presente ação direta. É como voto.” (*)

Ministro Beltrano do Val:  “Senhora Presidentê, Egrégia Corte, douta representante do Ministério Público Federal, ilustres advogados, demais presentes, inicio meu voto-vista afirmando que a Lei Complementar nº 2010/1815, cognominada de Lei da Roupa Suja, cujo sentido e alcance estão em jogo nesses autos, representa um marco histórico no fortalecimento de nossas instituições democráticas. Como de sabença, a Lei Complementar nº 2010/1815 resultou de intensa mobilização da sociedade civil organizada, capitaneada, dentre outros, pelo Movimento de Combate à Fofocagem Nacional, que formalizara projeto de lei junto à Câmara dos Deputados subscrito por mais de um milhão e trezentos mil cidadãos. O propósito não poderia ser mais inequívoco: expungir da classe política pretensos candidatos que, por sua vida pregressa, tenham vilipendiado valores tão caros ao processo eleitoral, conforme se infere do art. 14.726, § 109, da Lei Fundamental, como a ética, a moralidade e a probidade na gestão da coisa pública. Não se desconhece que o aludido projeto de lei de iniciativa popular foi encampado por parlamentares, que assumiram sua “paternidade”, mas não é novidade que há muito a sociedade civil organizada reclama por ética e por moralidade no exercício desse múnus público, que é tornar-se um representante eleito, um agente político.

Para o cidadão, hoje é certo que a probidade é condição inarredável para a boa administração pública e, mais do que isso, que a corrupção e a desonestidade são as maiores travas ao desenvolvimento do país e ao resgate da credibilidade dos agentes políticos perante a sociedade. Mas não é só aos agentes eleitos que é imposta a estrita observância dessas diretrizes de alinhamento moral. Aos pretensos candidatos também é exigida a retidão ética, mediante o enquadramento de suas ações pregressas a aludidos cânones de probidade. Um cidadão que corrompe para ingressar no poder, a fim de investir-se em um mandato eletivo, também é capaz de corromper para perpetuar-se nele.  Se é correta, consoante hodiernos estudos de ciência política, a premissa de que existe um descolamento entre a classe política e a sociedade civil, esse distanciamento deve ser creditado, em larga medida, (i) à ausência de uma cultura verdadeiramente republicana e transparente na condução da res pública e (ii) ao promíscuo, nefasto e aviltante patrimonialismo entranhado em nossas instituições e em nossas relações sociais, já denunciado outrora pelo saudoso Raymundo Faoro, em seu clássico Os Donos do Poder, que proporciona a apropriação indevida da coisa pública pelos agentes eleitos ou por seus apadrinhados e a confusão perene – e igualmente deletéria – entre o público e o privado, apanágios que lamentavelmente ainda vicejam nos dias atuais.

Não por outra razão foi pensado um novo arranjo normativo para extirpar, ou, ao menos, amainar, práticas abusivas de poder econômico, político, de malversação de recursos públicos, levadas a efeito por quem esteja no poder político ou por quem pretende vir a exercê-lo. Ao editar a LC nº 2010/1815, e estabelecer critérios mais rigorosos para o exercício do ius honorum, o legislador ordinário não apenas prestigiou a vontade popular soberana, mas também [o legislador] deu concretude aos cânones constitucionais de moralidade e de ética, encartados no art. 14.726, § 109, da Constituição de 1988 que devem presidir a competição eleitoral e pautar a conduta do agente político quando da gestão da res publica. Dito de outro modo, o Congresso Nacional, ancorado na legítima manifestação popular de seu eleitorado, erigiu um sólido Estatuto da Moralidade do Processo Eleitoral, na feliz expressão cunhada pelo eminente Ministro, e amigo, aqui presente. Ao revés: consoante bem pontuou o Parquet federal, em seu pronunciamento, devem ser expungidos do debate os argumentos ad terrorem, no sentido de que o legislador, caso chancelássemos as inovações da Lei da Roupa Suja estaria autorizado a criar prazos mais alargados e desarrazoados. Se eventualmente o absurdo se realizar, é mister dessa Suprema Corte, no exercício de sua jurisdição constitucional, invalidar atos normativos que desafiem a proporcionalidade, a razoabilidade e o abuso do poder de legislar. Não é essa, porém, a hipótese sub examine. Por essas razões, voto pelo DESPROVIMENTO da presente ação direta.”(*)

Bem, eu poderia continuar indefinidamente com este arrazoado que, com certeza, a maioria imensa do povo brasileiro não tem a menor noção do que realmente significa. Lendo ou vendo na televisão… Vendo, claro, é mais interessante, apesar de cansativo, pois Suas Excelências têm um enorme pendor para as artes teatrais, seja no gestual, seja na verbalização das palavras, escandidas com fúria repentina ou com monocórdica suavidade.

Infelizmente, neste assunto, não teremos a satisfação de ver Suas Excelências gastando o latinório (ou de usar o controle para buscar algo mais útil e agradável de se ver). Não há culhões, como eu disse… É só observar uma das entrevistas da pre-si-den-tê Carmem Lúcia, sobre outro assunto espinhoso para o Judiciário brasileiro, as remunerações acima do teto constitucional recebidos pelos juízes.

Segundo levantamento de O Globo, com base nas informações salariais divulgadas pela primeira vez pelo CNJ, fica claro que, nos últimos meses, 71,4% dos magistrados dos Tribunais de Justiça (TJs) dos 26 estados e do Distrito Federal somaram rendimentos superiores aos R$ 33.763,00 pagos aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — valor estabelecido como máximo pela Constituição.

Mesmo com estes dados nas mãos, Sua Excelência foi condescendente com os seus: “Não sei se o problema maior é dos vencimentos dos juízes, por uma singela razão de que não temos conhecimento dos ganhos dos outros poderes, que também dispõem de ganhos, parece, acima do teto. Por isso mesmo, também precisariam ser conhecidos para sabermos se há o problema, qual é o problema e quem tem o maior problema.”

E justificou sua precaução com os claríssimos e frios números mostrados pelas planilhas: “Estamos apurando quais são os vencimentos, se são casos esporádicos, para dizer que nem todo pagamento abaixo do teto significa, necessariamente, que seja legal, porque (o magistrado) pode ter recebido sem base legal. Por outro lado, o vencimento num mês com gratificação natalina, pode chegar ao chamado extra teto, que ultrapassa o teto e não é ilegal.”

É óbvio que a excelsa pre-si-den-tê do STF tem uma justificativa irretorquível para titubear quanto às providências que deveriam ser tomadas contra os chamados fura-teto (afinal de contas, os aplicadores da lei estão infringindo a lei!): ela realmente não tem culhões!

PS 1 (*)  – os textos atribuídos aos ministros são, realmente, da lavra de ministros do STF, em julgamentos de outros assuntos, com alguns números, palavras e expressões adaptados ao contexto por mim.

PS 2 – o julgamento do Lula será dia 24/01 próximo: será que os desembargadores (exceto o amigo e ‘compadre’ do Moro, relator da ação, cujo voto pela condenação já está dado desde sempre) usarão estas palavras bonitas e cheias de latinório para julgar o fato ou seguirão o presidente do TRF-4 que, sem ler o conteúdo da decisão do Moro, disse que ela era impecável? A ver…

PS 3 – por mais que a grande imprensa tente fantasiar ou novelizar a realidade, o fato é claro: muito mais do que Lula, a Justiça está sob julgamento! Ou os juízes são imparciais, se baseiam no que provam os autos, ou eles são parciais,  julgando de acordo com suas preferências e opções políticas. Neste caso, é melhor embrulhar o Brasil e devolver a Portugal, pedindo desculpas pelos estragos feitos (pelo povão, claro… não pelas elites) em 500 anos…!

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