Samaritanismo

Disse Jesus: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e disse-lhe: ‘Cuide dele. Quando voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver”. (Lucas 10:30-35)

Nos meus tempos de grupo escolar, 60 anos atrás, o Brasil já era um Estado laico. Ou seja, não havia aula de Religião. O Estado laico existe no Brasil desde o Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa (127 anos depois, o STF admite o ensino religioso nas escolas públicas… E tem gente que jura que o Brasil não está regredindo!!!).

Mas, a diretora do Grupo Escolar Olegário Maciel, muito católica, permitia que um padre, Carlos, frequentasse a escola, não apenas para conversar sobre Deus, Cristo, o céu e o inferno mas, principalmente, para ganhar a confiança e, quando fosse a ocasião, receber a confissão daquelas crianças ‘endiabradas’.

Já então, não era minha praia… Não porque eu já tivesse dúvidas sobre a existência de Deus… (A certeza veio depois. O máximo que eu me perguntava então era porque o Céu ficava em cima e o Inferno em baixo…!). Não! eu acreditava piamente em céu e inferno – meus pais eram católicos, apostólicos, romanos e, apesar de não serem assíduos frequentadores de missas, me educavam de acordo com os preceitos cristãos, incluindo aquelas regras fundamentais estabelecidas por Moisés nos dez mandamentos (ou melhor, que Deus entregou a Moisés quando ele conduzia os escolhidos à Terra Prometida).

Mas, como já escrevi aqui, eu sempre fui um tímido crônico, e esta história de contar para um homem muito alto, de cabeça quase branca e batina preta, que eu tinha odiado minha mãe por não me deixar brincar lá na rua enquanto não terminasse o dever de casa ou ter molhado a cabeça para fingir que tinha tomado banho (eu odiava tomar banho, aliás!) ou ter botado cuspe na mão para bater bafo e ficar com uma figurinha que faltava no meu álbum, não tinha a menor chance de acontecer.

Padre Carlos, na verdade Karl Willelm, era alemão de nascimento e fugira com os pais para Portugal antes da Primeira Guerra Mundial e, por promessa da mãe, quando vieram para o Brasil, ele foi para o Seminário de Mariana  (isto eu só fiquei sabendo muitos anos depois quando, estagiando no Diário da Tarde, li o necrológio dele no jornal), Padre Carlos, repito, nunca, em 04 anos de grupo escolar, deu qualquer sinal que não gostasse da minha total indiferença…

Só pouco antes de nossa ‘formatura’, quando eu e mais dois colegas iríamos receber  medalhas como melhores alunos entre os ‘formandos’, padre Carlos apareceu na minha frente e disse, ainda com certo sotaque: “Você é um bom garroto, mas nunca serrá um bom samarritano… só bons cristons son! Cuidado, mein sohn, porque os portas do Céu non se abrrem parra todos! Já as do Inferrrno eston semprre escancarradas! Inclusive parra aqueles que renegam Deus Nosso Senhorrr!”

Tempos depois, já no Colégio Estadual da Serra, ao lado do Convento dos Dominicanos, em conversas com eles e já com a certeza que política me interessava muito mais que religião, compreendi a história do bom samaritano – os dominicanos de Belo Horizonte eram adeptos da Teologia da Libertação, e nós vivíamos a época do pré-golpe, que, logo depois, instalou a ditdtura dos militares; a gente matava aula do colégio para ir ao convento discutir a situação política do país, mas sempre sobrava tempo para os dominicanos falarem de religião, principalmente da visão cristã de mundo.

Eu gostava muito de conversar com frei Marcelo, que tinha estudado na França. Ele era um ‘fã’ de São Lucas, o único evangelista que não conheceu Cristo, mas que, segundo ele, foi quem teve uma compreensão precisa da dimensão humana de Jesus.

Falando com ele sobre padre Carlos e lembrando a predição dele de que eu nunca seria um bom “samarritano”, frei Marcelo foi didático: “A Igreja tradicional tem o vício de dividir as pessoas em boas e más, sendo as primeiras as que acreditam em Deus, as que têm fé, as que seguem os preceitos da Santa Madre Igreja, não  necessariamente os de Cristo, e as segundas as demais…”

E foi enfático: “… mas nós sabemos, com Cristo, que todos somos bons e maus. Eu conheço cristão que vive a sua vida fazendo o bem, ajudando os outros, dando a mão a quem está sofrendo e é um péssimo marido,  inferniza a vida da esposa, porque vive com a pessoa errada, mas não se separa porque a Igreja não permite.

Nesta história do bom samaritano, São Lucas é claríssimo: antes do samaritano que, nos tempos de Cristo, era “inimigo” dos judeus, passaram um sacerdote e um levita, ambos religiosos (o primeiro oficiava os cultos e o segundo cuidava do tabernáculo) que não pararam… ou seja, a bondade não é uma prerrogativa apenas de quem segue as leis cristãs. Bons samaritanos são todos aqueles que têm coração grande, capazes de abraçar e abrigar todos e qualquer um.”

Eu convivi com muitos bons samaritanos na vida, que fizeram da bondade uma profissão de fé. A irmã mais velha da minha primeira mulher, por exemplo, enfermeira em São Paulo, que dedicou a vida a cuidar dos outros e, solteira convicta, adotou duas crianças humildes, que criou e encaminhou na vida. E minha segunda mulher, em cujo coração sempre cabia (e cabe) mais um, fosse a filha de uma família humilde, que morou conosco até trocar o estudo pelo namoro, fosse a amiga de uma sobrinha ou o próprio sobrinho, que também moraram conosco nos primeiros anos de faculdade, todos filhas e filho dela até hoje, tenho certeza que tão amados quanto as duas filhas biológicas.

O único problema do coração muito grande é, em vários casos, a inconsequência da bondade praticada. Tenho um amigo que diz que  bons samaritanos não deveriam atuar em qualquer coletividade, pois na ânsia de fazer uma boa ação, resolvendo o problema de alguém, ele não pensa que aquela bela ação feita para um, pode estar prejudicando vários outros ou, até, o próprio núcleo familiar a que ele pertence. Ou seja, o mau samaritano também existe!

É o que aconteceu com os jovens e “endeusados” responsáveis pela Operação Lava Jato, por exemplo. Na ânsia de acabar com o que consideram “a maior ameaça à humanidade”, a corrupção, eles levaram à bancarrota centenas de empresas que viviam em função da Petrobras, da Nuclebras e das grandes empreiteiras brasileiras, carregando junto milhões de empregos e levando ao desespero milhares de famílias que dependiam dos mais de 13 milhões de desempregados ora sobrevivendo de bicos ou do favor de parentes ou dos benefícios do Estado, que ainda resistem à sanha neoliberal da quadrilha que assumiu o poder.

Uma das grandes lições que carreguei pela vida, a partir de palavras de frei Marcelo – que, a propósito, foi perseguido pela ditadura e acabou por se asilar na Itália, onde morreu com menos de 50 anos –  é que o Deus em que ele acreditava deu ao ser humano a mesma dose de bondade e maldade, e dotou-o  do livre arbítrio para escolher qual delas usar com maior ou menor intensidade. “Neste prisma – dizia ele – muitas pessoas usam uma dose de maldade para proporcionar várias doses de bondade, e isto Deus compreende, sem julgá-las .”

O diabo, digo eu hoje, é que muita gente também usa uma dose de bondade – o combate à corrupção, por exemplo – para fazer várias maldades, e a Justiça terrena, por covardia ou concordância, tem a mania de não confrontá-las, como é o caso dos tantos desrespeitos às normas legais e preceitos constitucionais cometidos na Lava Jato e seus muitos filhotes. Mas, com certeza, todos irão para o Céu, pois, como também insistia frei Marcelo, o filho de Deus, como qualquer ser humano, tinha rompantes de maldade e costumava ameaçar:

“Na mesma história do bom samaritano, em passagem anterior (Lucas 10:10-11), Jesus diz a seus discípulos: “Mas quando entrarem numa cidade e não forem bem recebidos, saiam por suas ruas e digam: até o pó da sua cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vocês. Fiquem certos disto: O Reino de Deus está próximo”. “Ao contrário da imensa maioria dos humanos, porém – dizia ele – Nosso Senhor tinha uma infinita capacidade de perdoar as maldades e os erros dos outros, pois sabia quão frágil é a alma e quão permissivo é o caráter humano.”

Desde então (obrigado, frei Marcelo), me despreocupei com a predição de Padre Carlos que, como se vê, me traumatizou (imaginem um garoto de 10 anos, tímido, arredio, medroso mesmo, começando a descobrir a vida, sendo ameaçado com o fogo do inferno na hora de receber uma medalha exatamente porque fez, com louvor, aquilo que devia fazer, estudar!).

Beirando os 70, menos tímido, mais presente e mais corajoso, e consciente das minhas virtudes e defeitos, e das maldades e bondades que fiz ao longo da vida, não me arrependo de não ter sido um ‘bom samarritano’. Fui, sou e vou continuar sendo um ser humano que, ateu convicto,  gostaria muito de ter fé em um Deus que, por justiça, enviasse um raio sobre as cabeças de nossa elite, Temer e seus asseclas inclusos, e livrasse o Brasil de seu eterno berço esplêndido… Mas, infelizmente, Deus não existe!

 

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